Momentos de mudança são sinónimo de nervosismo para todos. E quando se trata de mudanças na vida de uma criança, o sentimento multiplica-se dos mais novos aos pais. A passagem do infantário para o primeiro ciclo deve ser vista como um momento decisivo do que será o futuro ou a mudança é mais natural do que imaginamos?
“Esta é uma fase de turbulência, isso é quase que garantido, mas devemos ter a noção de que a maior preocupação vem dos pais, não parte das crianças.” É desta forma que Manuel Magalhães, pediatra, olha para a passagem da pré-escola para a escola primária. Mas ainda que a ansiedade, nervosismo, preocupação e turbulência façam parte comum de um momento de mudança como este, o profissional alerta que o importante é o bem-estar dos mais pequenos – por isso, há que garantir que todos estes sentimentos não são transparecidos e, acima de tudo, que não influenciam de forma negativa o estado de espírito dos mais novos. “É expectável os pais ficarem preocupados, mas na verdade é um momento mais tranquilo e natural do que imaginado, que não necessita de demasiadas preparações.”
Para Manuel Magalhães, o primeiro passo é descomplicar emoções. “A ansiedade sentida é a ansiedade que qualquer pessoa tem numa altura importante da vida e no caso das crianças não é diferente. Esta é uma ansiedade boa, que leva a ter atenção aos pormenores e a ter cuidado com o processo de mudança.” No entanto, há que estar alerta, uma vez que “começa a ser um problema” quando este sentimento nos impede (aos pais ou aos mais novos) de ter vivências tranquilas – em especial vivências de mudança, sobre as quais se corre o risco de ter associadas sensações negativas, não porque algo de errado aconteceu, mas apenas porque antecipamos algo mau sem razão para tal.
Assim, o pediatra lembra que, para se preparar para a mudança de escolaridade, quer seja ela nesta idade ou mais adiante, é fundamental ter a consciência que “para as crianças é um processo mais tranquilo do que para os pais”. “As transições são bem feitas pelos professores e é nesses profissionais que os pais devem confiar para saberem que tudo está pensado para que os filhos não passem por um choque.”
Para Manuel Magalhães, é atualmente compreendido que o foco, mesmo a partir dos cinco ou seis anos, idade comum de entrada na educação primária, continua a ser a brincadeira. “Muitos pais ainda acham que na pré-escola as crianças apenas brincam e que a aprendizagem a sério será na primária, mas é uma conceção errada. Brincar é aprender.” Uma vez que as crianças aprendem a brincar, “devem continuar a fazê-lo no primeiro ano de escolaridade”, o que tem sido garantido pelo sistema de ensino. Não se tratam crianças como pequenos adultos obrigados a concentração ininterrupta.
Uma mudança, vários passados
A psicóloga Marta Calado aproveita a conversa sobre a preparação feita a nível profissional no ensino para explicar que a mudança do pré-escolar para a primária é particular por abarcar uma grande “amplitude de situações”. “Quando chegamos a um primeiro ano de uma escola, temos crianças que andaram numa pré-escolar com aqueles mesmos colegas, outros que não conhecem ninguém, outros que estiveram com os avós ou com amas, não tendo contexto de sala.” Toda esta panóplia de historiais torna o início da escolaridade um processo complexo pela necessidade de suprir todas as falhas vindas de cada um dos passados. Além disso, “é diferente uma criança que esteve num pré-escolar ou a ser educado pelos avós entrar numa sala de aula. As reações psicossomáticas serão diferentes”. Em suma, cada caso é um caso.
“As crianças que já frequentaram o infantário têm maior capacidade de adaptação”, explica Marta Calado. Por isso, é natural que os mais novos apresentem sinais psicossomáticos mais vincados se não tiveram passado antes pelo infantário. “Estes últimos estiveram numa bolha, não estiveram num ambiente estruturado para estarem sentados, para partilhar, para lidar com novas pessoas, o que faz com que todas essas vivências sejam uma novidade e necessitem de mais tempo de adaptação do que aqueles que já por elas passaram.”
É exatamente para lidar com estas diferentes situações que o sistema de ensino se prepara, cada vez mais, para garantir uma passagem subtil e natural. Marta Calado, profissional da Clínica da Mente, afirma que “há já muitas escolas que promovem esta alteração com base em atividades que fazem o intercâmbio entre o último ano do pré-escolar e o primeiro ano da primária”. Ou seja, “todo o currículo do infantário está concebido para que, do ponto de vista do sistema nervoso e das competências, façam uma adaptação eficaz” e que a realidade da escola primária não seja completamente estranha aos mais novos.
Mas, afinal, onde é que são sentidas mais dificuldades nesta fase de mudança? Luís Ribeiro, presidente da Associação de Profissionais de Educação de Infância (APEI), explica que pré-escola e primária têm dinâmicas diferentes. “O primeiro ciclo tem uma dinâmica mais conservadora, na qual estão sentados, e onde há uma atividade mais ativa por parte do professor. Já na pré-escolar, há mais liberdade de circulação e de escolha.” É por aqui que se identifica a maior dificuldade: “Desconstruir estas duas lógicas e articular aprendizagens”.
Sinais a estar atento
E a desconstrução, diz, deve também partir dos próprios profissionais do Ensino Primário, que devem compatibilizar as suas expectativas com o momento de mudança. “Não se pode esperar que, de repente, uma criança esteja duas horas na sala sentada a prestar atenção”, alerta o pediatra Manuel Magalhães, voltando a introduzir a necessidade de brincadeira também na escolaridade primária, que deve ser assegurada pela própria escola.
Voltemos aos tais sinais psicossomáticos. Ainda que sejam variados, há alguns sinais aos quais se deve estar atento. “As crianças estarem mais tensas, terem mais dificuldade em acordar a uma determinada hora, terem atitudes de rejeição ou fuga, chorarem para permanecer com a figura significativa, terem dificuldade em se integrar com os outros, haver alterações no apetite, entre outros, são alguns dos alertas.”
Mas, para Marta Calado, psicóloga, não são os sinais em si que devem causar preocupação, mas antes a forma como os adultos em torno da criança lidam com os mesmos. “Os adultos, de forma geral, não sabem ajustar um discurso eficaz para quando as crianças trazem estas preocupações consigo.” “Eu vou buscar-te mais cedo”, “vou buscar-te para almoçar” ou outro tipo de cedências semelhantes, ainda que apaziguem a situação no momento, estão a reforçar medos e inseguranças.
Mas há algo que se possa fazer para preparar a mudança e amenizar os tais sintomas referidos? Para Marta Calado, trata-se de familiarização com as novidades. Tudo o que for novo nesta fase, deve ser previamente apresentado à criança. “Visitar a escola nova, se for o caso, fazer uma visita interior ou, caso não seja possível, exterior. Explicar que é ali que será o seu novo dia a dia. Fazer esta visita duas ou três vezes. Inclusivamente, caso seja possível, conhecer funcionários, professores ou novos colegas é também uma estratégia eficaz.”
Facilitar para preparar
Ao apresentar a situação antes do dia de maior nervosismo e dentro de um contexto controlado e conhecido da criança, como é o caso de ir com a família, está-se a criar referências para a criança, que, depois, não as encarará como realidades estranhas. “Toda a informação que se sabe previamente deve ser dada à criança”, desde horários, disciplinas, matérias, livros, etc. Isto porque, completa, “a mudança é tanto mais fácil quanto menos elementos novos houver”.
Ainda assim, se há vontade de promover o desenvolvimento de determinadas capacidades que irão facilitar, por exemplo, a aprendizagem da escrita e leitura, o pediatra Manuel Magalhães realça a importâncias de brincadeiras que exercitem a motricidade fina, “uma vez que, para aprender a escrever, tem de ter controlo sobre o punho e a mão”. “Fazer trabalhos manuais como recortes, brincar com Lego, fazer picotagem. Tudo isto vai ajudar a ter controlo sobre os movimentos e a pegar mais corretamente no lápis.”
Para Luís Ribeiro, educador de infância, é fundamental confiar no sistema de ensino e deixar esta estrutura preparar a mudança. “Principalmente em rede pública, o processo é mais facilitado porque, como os jardins de infância estão integrados em agrupamentos, a transição acaba por ser natural.” Há contacto entre professores de ambos os níveis de educação; há, por norma, um espaço comum ou proximidade entre os dois; grande parte de um grupo do infantário é transferido junto para uma mesma turma na primária. Tudo isto a pensar no bem-estar das crianças.
E durante as férias?
Nas férias, indica o presidente da APEI, “o que há a fazer é zero”. “Não há nenhum trabalho feito nas férias que vá resolver alguma questão complicada no futuro. Por isso, o importante é trabalhar a segurança efetiva.
A psicóloga Marta Calada corrobora a ideia de as férias serem um momento exclusivo de lazer. “A única tarefa a fazer, e isto é para os pais, é normalizar.” A comunicação é chave em qualquer relação e é preponderante num momento de mudança. Desta forma, a criança deve estar à vontade para partilhar tudo o que sente e “todos esses sentimentos devem ser escutados e validados”. Não se deve dizer “isso não é nada” ou “isso passa”, mas antes mostrar que o que sente é normal. “O ideal é dar exemplos de como nos sentimos nós quando fomos para a escola ou quando uma grande mudança nos aconteceu na vida. Dizer que também não conseguíamos dormir direito, que tínhamos borboletas na barriga.”
Mas nem só dos pais se fazem os convívios da criança e a restante família ou amigos podem constantemente reforçar uma importância e responsabilidade acrescidas que não correspondem à realidade. “Devemos desmistificar a perceção dos mais velhos que é indiciadora de medo”, explica Calado. “Houve alguma coisa no teu dia que te fez sentir ansiosa?” A pergunta deve ser feita. Novamente, a comunicação a funcionar.
Para finalizar, o pediatra Manuel Magalhães considera importante “perceber se está tudo bem com a saúde da criança”, fazendo uma consulta geral ao médico antes de iniciar as aulas. “Deve haver um contacto mais próximo entre os pais, o pediatra e o professor para saber como reage a alguns detalhes que precisam (ou não) de preocupação.” A má visão, por exemplo, diz, é um dos problemas mais comuns que ficam por diagnosticar no início da escolaridade.