Valter Hugo Mãe

Isabel Lhano depois da idade


Os mais atentos lembrarão que há tão pouco tempo escrevi sobre o aniversário da minha amiga, pintora, Isabel Lhano. Setenta anos de idade, 50 de pintura, mil de amorosidade e aprendizagem. Hoje, tão quase nada depois, a Isabel não tem mais idade. Que idade atribui a morte? O que é a morte senão o tempo todo sem conta, sem mais dias e noites, sem medida, sem sentido, o nosso sentido?

O que fica em quem herda a memória única de alguém? Quero dizer, que obrigações se impõem, o que lhe compete no complexo labirinto entre a dor e a necessidade de lembrar e fazer lembrar? Porque me sinto, ao mesmo tempo, incapaz de me mover e obrigado a levantar montanhas nos ombros.

A Isabel mandava que fizéssemos festa. Nada de flores mortas, arrancadas em ramos que apodrecem, nada de prantos corais, multidões de sofredores investindo na morte ao invés de celebrarem a vida e a obra. Contudo, a mais pequena impressão de festa me agride, porque estou atónito e, tão de súbito, não posso ignorar a impressão de que a cidade ficou vazia.

Nas especulações que fazíamos, certamente incautos, ela mandava que à sua morte intensificássemos o gesto. Queria dizer que nos deveríamos amar mais, fazer pelos outros, cuidar das pessoas, salvar os cães, lutar contra o fascismo, dignificar as mulheres, fugir das ditaduras, lembrar os artistas, dançar, haver noites no café só para rir. Era como queria que fossem as nossas forças. Metidas a caminho da alegria e nunca da tristeza.

Mas a tristeza é uma forma de corrupção, porque entra como vírus em qualquer oportunidade e adoece o pensamento, adoece mesmo aquilo que sabemos e impede o exercício da razão. Ficamos ao seu serviço. Escravizados por seu comando. Diminuídos.

Para amar a Isabel, porque não tenho outra hipótese senão amá-la, tenho um plano: aninharei por uns dias diminuindo até ser um nico de porcaria no chão que qualquer sopro possa arremessar. Deixarei que a tristeza me explique tudo quanto quer explicar. No entanto, como se houvesse por dentro uma semente aguardando, sei já que mais tarde me levanto ao tamanho de um planeta e meus olhos farão a luz inteira e a vida será ainda mais policromática. Porque a amizade importante que temos tem de fazer de mim um seu guerreiro, alguém que aprendeu sua lição de compromisso absoluto com a vida, com a força de criar, com os afectos, com as ganas de haver melhor sociedade para todas as pessoas.

A Isabel só nos perdoará se soubermos continuar a abundante forma de acreditar que nos compete, sim, a esperança e o esforço. Compete-nos não desistir. E espanar dores em favor da bravura. Há muito para fazer.