“Este edifício é uma ode aos meus avós”

Ricardo Marques nas traseiras da Fábrica de Cerâmica de Montargila

Neto de trabalhador de antiga fábrica de azulejos Montargila, em Oeiras, recupera património industrial com obras de Vhils e Joana Vasconcelos.

Abandonada desde os anos 60 do século XX, “foi por sorte” que não desabou. Sorte ou destino, que haveria de colocar à porta da antiga Fábrica de Cerâmica de Montargila o neto de um antigo trabalhador, mudando para sempre o mais provável rumo do património classificado: desaparecer. Como tantas outras pelo país.

Há muitos anos que Ricardo Marques assistia com tristeza à degradação do edifício em Algés, Oeiras. Mas em 2016, o anúncio da venda deu-lhe o empurrão que precisava para ficar com “a casa onde a história da família começou”. Agora, quer devolver o espaço à cidade e democratizar o acesso à arte. “O meu avô trabalhou aqui e foi esta a primeira casa onde morou com a minha avó. Uma pessoa muito importante na minha vida que faleceu um ano antes da venda da fábrica. Foi por um desejo de homenagem ao seu espírito empreendedor e lutador que adquiri o espaço num leilão”, revela o descendente de uma família humilde, hoje médico-dentista.

Mais do que uma oportunidade para homenagear o avô António Marques – e todos os que ali tiveram familiares a trabalhar -, viu aqui a possibilidade de devolver um importante património industrial à cidade. “Pertence a todos e gostaria muito de partilhá-lo”, confessa.

Imagem dos avós de Ricardo Marques esculpida na parede pelo artista português Vhils

Para concretizar o seu desejo, contactou vários artistas, como Joana Vasconcelos, cujo contributo para o novo espaço já é visível da rua. Um painel de azulejos Viúva Lamego, numa das fachadas exteriores, “é o primeiro painel de azulejos de iluminação com fibra ótica no país”. “A arte não deve ser elitista. As pessoas não devem ter de pagar para ver uma intervenção artística, podem estar apenas a passar lá fora e contemplar”, defende. Outros reconhecidos artistas se juntarão, como o ceramista Manuel Cargaleiro, com uma intervenção em azulejo também no exterior da fábrica, e os artistas plásticos Bordalo II, com um galo em pedra, e “provavelmente” Alexandre Hopare, com uma escultura. Mas há mais.

“Arte não deve ser elitista”

Entre andaimes e tábuas de madeira, como se nunca tivessem saído de lá, dois rostos saltam à vista, esculpidos na parede pelo artista Vhils, numa clara homenagem aos avós de Ricardo. Foi precisamente nesta divisão que chegaram a viver. “Todo este edifício é uma ode a eles. Sem nunca ter estado cá dentro, fazia parte das minhas memórias. A minha avó fazia o jantar na caldeira, onde se aquecia o barro e os materiais”, recorda, mostrando o sítio onde dormiam, enquanto os fornos produziam azulejos, tijolos e telhas.

A fábrica renovada abrirá ao público em janeiro do próximo ano e deverá acolher ainda “exposições temporárias e pequenas mostras de escolas”. “Gostava que se tornasse um polo onde o azulejo é o rei, mas estamos abertos a todo o tipo de intervenções”, anuncia, acrescentando que pretende ainda organizar um evento anual, “com concertos ou peças de teatro”. Desta forma, espera que “se contribua para a perenização da memória da fábrica”.

Numa tentativa de unir duas paixões, medicina dentária e arte, Ricardo Marques está a reabilitar a antiga fábrica para ali também funcionar a sua clínica dentária, gabinetes de cirurgia estética, uma cafetaria e “um pequeno centro de artes”. “Queria que fosse um sítio onde as pessoas viessem beber café ou ler um livro, enquanto desfrutam de obras de artistas consagrados, sem precisarem de ir a um museu para as ver. Quero que a medicina se associe à arte de mudar vidas, tudo aquilo que provoca sensações”, explica.

Fundada em 1897, a Fábrica de Cerâmica de Montargila é um dos poucos edifícios industriais ainda revestidos por tijolo burro em Portugal. Nunca tinha sofrido obras de fundo desde que fechou. “Estava completamente devoluto e a fachada muito maltratada. A qualquer momento podia ruir”, salienta, Ricardo Marques, reconhecendo que teve “sorte”. Além da “forte pressão imobiliária para que fosse uma moradia”, só cinco anos depois da compra pôde avançar com as obras. “O processo afugenta quem quer cuidar de património”, lamenta. Do outro lado da estrada, outro edifício da fábrica, menos icónico, aguarda comprador.