Joel Neto

Dupla de ataque


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

O voo 877 da TAP acelera no sentido de Fontebuona, levanta não demasiado a pique, guina uma vez à direita e outra mais longa à esquerda, e vai estabilizando devagar, em busca da altitude de cruzeiro. Pelas janelas a Oeste chega-nos a luz amarelada e feliz do fim do dia. E eu pergunto-me: o que trará o Artur da nossa viagem? Lembrar-se-á de alguma coisa destes dias, no futuro, ao sentir o odor de uma pappa al pomodoro ou de um ossobuco alla fiorentina? Parecer-lhe-á reconhecer alguma coisa, ao tornar a ouvir um ciao dito como saudação, e não como despedida? Terá ao menos a impressão de regressar a algum sítio já visitado, indefinível mas familiar, quando passearmos ao redor da ilha, os três, e um de nós se lembrar de pôr o Luigi Tenco no Spotify:

Mi sono innamorato di te

perché non avevo niente da fare

Mesmo sem memórias concretas, alguma coisa lhe ficará: um gesto, uma rotina, um rosto. Também por isso decidimos que nenhuma viagem seria demasiado incómoda para ele, nem ele para nenhuma viagem. Nós vamos? Então ele vem. Se é mesmo para o deixar crescer numa ilha, devemos começar já a acautelar-lhe a cosmovisão. Será o seu maior desafio. E, além disso, assim também não temos de ficar longe dele. Como poderíamos?

Portanto, em oito meses já voou outras tantas vezes – em geral, adormeceu num terminal e acordou no seguinte, aos sorrisos e às palrações. Mas uma viagem assim tem outro significado. Tudo no Mediterrâneo é ao mesmo tempo ligeiramente decrépito e infinitamente charmoso, o que faz dele uma das regiões mais fascinantes do Globo (e, em todo o caso, a minha preferida). Mas depois há Itália e a sua cultura interminável: a mitologia, a poesia e o império; o direito, a política e as comunicações; a religião, a Renascença e a república; a música, o cinema e a literatura; o vinho, o queijo, a culinária. E depois ainda há a Toscana em particular: os vinhedos que se estendem pelos vales de luzes e sombras, os renques de ciprestes recortando as propriedades nas colinas, as comunas ordenadas onde em cada cantinho se planta uma flor.

Uma pessoa está (sei lá) em San Gimignano, medievalíssima, e não consegue deixar de pensar no tempo que foi preciso empreender naquela engenharia, nos erros-e-tentativas necessários até se chegar a soluções que durassem até hoje. Mas a seguir detém-se no modo como se veste um homem, nas interpretações que esgrimem em torno de uma peça de Verdi dois cantores que param ao seu lado na passadeira ou na simples coreografia com que o rapaz de uma geladaria artesanal serve um pistacchio e buontalenti, como se o penteasse, e volta a achar que tudo é ainda, antes e mais do que o resto, a procura da beleza – o seu culto e a sua obsessão.

E é impossível que nada disso chegue a sensibilizar uma criança, mesmo um bebé – ademais um bebé gregário, que interage com raparigas e rapazes, velhos e crianças, e ainda assim encontra sempre tempo para continuar a produzir a habitual aprendizagem diária. Mas, se nada mais tiver ficado, continuaremos a ter as fotografias, e em especial aquelas que mostram os seus dois primeiros dentes, afinal transalpinos. De início julgámos que seria só um – ainda nos referimos a ele como “o dentinho italiano”. Mas eis que já lá vinha outro, mais pequenote e rabino: ficaram “Gianluca Vialli” e “Roberto Baggio”.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)