Valter Hugo Mãe

Dormir com os livros


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Há quase sempre um livro escondido nas almofadas, algum livro que esteja a ler ou queira tanto ler na primeira oportunidade que não consigo permitir distância alguma. Acontece com as edições dos meus romances. Nos primeiros dias, feliz de os ver, caio no sono depois de os admirar como criança. Sei que fica o livro ao lado numa companhia bizarra mas carinhosa, importante, que em tanta coisa justifica a minha vida. Ultimamente, por aumentar a loucura, a ideia de conforto, a dimensão indecorosa que a idade nos oferece, é frequente haver mais livros na cama. Ao ponto de, há dias, ter deixado um corpo inteiro de páginas e capas ao meu lado que, na penumbra, poderia ser o corpo de alguém.

Todos os que gostam de ler imaginam a maravilha de dormir numa biblioteca. Talvez nos tornemos donos de nós mesmos quando permitimos, contra todas as alergias e contra toda a sensatez, que os livros invadam o quarto, postos em toda a parte como uma multidão de vozes onde, afinal, nos queremos inscrever. Há uma cidadania específica para o leitor. O leitor pertence a um país mutante que se forma e reforma constantemente, onde o poder é volátil e se muda de invernos para verões numa só frase. Nesse país, mais e mais, quero viver.

Não é um modo verdadeiro de alienação. É, ao contrário, o super-encontro humano. Aquele que se faz através da intensidade da Literatura, da intensidade da arte que mais me convence de que, por um triz, nos tocamos uns aos outros. Transcendendo lugares e épocas, por um triz, Novalis ou Carolina de Jesus passam mesmo por aqui, ficam bastante no corpo que a penumbra imagina ao meu lado, deitam e esperam por mim. Seus livros esperam por mim os séculos que forem necessários para que eu me aperceba de que posso estar num país nosso. Nosso país de ler, de pensar, de imaginar mais futuro e mais humanidade.

Admito que passo a acordar mais cedo. Apercebo-me de que há livros na cama e quero-os com um desejo intenso, profundo, que me acorda até de propósito. As horríveis manhãs de outrora passam agora a ser horas extraordinárias, úteis, nas quais rentabilizo a leitura invariavelmente de encanto. Se os livros poderiam estar numa pilha na mesa-de-cabeceira, numa pilha no chão ao alcance da mão? Sim. Mas, como o Crisóstomo, o meu cão, ganharam o direito de subir ao macio da cama. Aninham ali tão fiéis quanto o cão, e contribuem definitivamente para a minha alegria.

Dormir com livros passou a ser uma prevaricação que não quero reprimir. Porque pouca coisa me traz maior sensação de paz do que permanecer deitado e, assim, fugir texto fora até aos confins do que é ser gente. Tão longe no espaço e no tempo, cada vez mais inteirado do como ser incompleto.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)