Valter Hugo Mãe

De onde ser?


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

O Vergílio Ferreira, no “Signo Sinal”, fala da facilidade de se ser de onde se é. Compreendo bem. Alguma coisa nos define e deixa como balizados pela natureza de um povo e de um lugar, como se não tivesse de haver sobressalto. Eu, contudo, nascido em Angola, com a infância inteira em Paços de Ferreira, metade do coração no Brasil, 42 anos em Vila do Conde e a família toda há 300 anos em Guimarães, sou, ao que parece, de lugar nenhum. Uma e outra vez, acontece de boa gente de Vila do Conde me fazer ver que não sou daqui, jamais serei. Para pertencer a estas terras, José Régio e Saul Dias são quanto basta.

O Régio, quando regressou de uma vida a trabalhar em Portalegre, quis ocupar o Solar de S. Roque. Em troca, deixaria à Autarquia seu espólio. Uma colecção admirável de arte sacra e todos os livros e manuscritos. A Autarquia recusou. Por causa disso, o escritor deixou grande parte da sua colecção na casa de Portalegre, que até hoje ostenta com orgulho peças de grande gosto e valor.

Saul Dias, o pintor Júlio, quis que sua casa virasse museu. Houve projecto criado por Álvaro Siza, todas as promessas por décadas, morreu José Alberto, seu único filho. Parte do espólio foi doado à Autarquia, as colecções dispersaram-se, doadas, por exemplo, ao Museu de Olaria de Barcelos. A casa onde viveu está fantasmática a ponderar sua própria ruína. Imagino que, quando a actual proprietária morrer, a deixará à Autarquia. Não por agrado algum, mas por exaustão e único modo de cumprir o sonho do artista, desaparecido há 40 anos.

De há uns poucos anos para cá, algumas instituições me perguntam sobre meus livros, meus quadros, meus cadernos manuscritos. Devo admitir que julguei deixá-los a pessoas amigas que os pudessem guardar como lembranças meio trapalhonas, com suas anotações crípticas, seus bonecos tristes e falhos, suas bizarrias tantas. Contudo, é tentador que se procure deixar tudo junto e, sobretudo, nas mãos de quem revela entusiasmo.

Entre uma casa nos confins ou outra no Brasil, a ideia de guardar quanto queira num espaço que será, mais tarde, acarinhado para que nada se perca, é afinal impossível de ignorar. O tempo das casas-museu é ultrapassado, mas o desejo de cuidado pelo acervo que se deixa passará jamais.

O problema central que esta questão me tem levantado é afinal o de saber de onde sou. Se posso ser de onde escolha, nem que à última hora. Poderei ser de um lugar qualquer que, por paixão e correspondência, eleja? Afinal, no que ensina Vergílio Ferreira, entendo que muito mais fácil é sermos de onde queiram que sejamos. Talvez, como os amores, sejamos sobretudo de onde nos queiram.

Não me sai da cabeça que um breve instante pode justificar tudo. Toda a vida senti que não passaria mais meia dúzia de invernos. De maneira que ainda queria saber se vou para os confins, se vou para o Brasil. Se espalho pelos amigos os trastes todos e fico aberto ao silêncio, que deve trazer um sossego impressionante.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)