Consumo ou tráfico? Eis a questão

Deter droga para consumo, independentemente da quantidade, vai deixar de ser crime em Portugal

Depois de um vai-não-vai, o Tribunal Constitucional deu luz verde e Marcelo promulgou. A nova lei da droga, que descriminaliza as drogas sintéticas e faz uma nova distinção entre tráfico e consumo, avança. Mas deixa para trás um rasto de críticas sonoras.

O que está em causa
A nova lei determina que deter droga para consumo, independentemente da quantidade, vai deixar de ser crime em Portugal. É esta a principal mudança e a que gerou mais dúvidas – e críticas. Até agora, se o consumidor fosse apanhado com uma quantidade superior à dose considerada necessária para o consumo médio individual de dez dias, isso era entendido como um crime de consumo. Com a nova versão fica estabelecido que a posse de uma quantidade superior a esta, “desde que fique demonstrado que tal aquisição ou detenção se destina exclusivamente ao consumo próprio”, não é criminalizada. Nesses casos, há encaminhamento para a comissão para a dissuasão da toxicodependência. Ou seja, privilegia-se o tratamento.

Porquê a nova lei?
PS e PSD justificaram os seus diplomas para a descriminalização de drogas sintéticas com a necessidade de distinguir entre traficantes e consumidores, e com o aumento do consumo destas novas substâncias (agora equiparadas na lei às drogas “clássicas”) nas regiões autónomas. O diploma final foi aprovado pelo Parlamento a 19 de julho com os votos a favor do PS, IL, BE, PCP, PAN e Livre, voto contra do Chega e a abstenção do PSD e de nove deputados socialistas.

“É evidente que nenhuma pessoa que se dedique à atividade de tráfico o vai assumir, e vai dizer que aquela droga era para consumo pessoal. Há aqui uma zona de penumbra”
João Goulão
Diretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD)

Marcelo e o Constitucional
A 17 de agosto o presidente da República decidiu enviar o diploma para o Tribunal Constitucional (TC) e justificou-o com a “falta de consulta” dos órgãos de Governo da Madeira e Açores. Mas o TC não lhe deu razão e validou a constitucionalidade: decidiu, por unanimidade, que os governos das regiões autónomas, onde o consumo destas drogas é particularmente elevado, não precisam de se pronunciar sobre a lei. Marcelo promulgou o decreto a 31 de agosto.

60%
dos exames laboratoriais de drogas e toxicologia feitos nas regiões autónomas testam positivo para as chamadas novas substâncias psicoativas

Críticas: uma caixa de Pandora?
As críticas não tardaram. Do Governo Regional da Madeira (que lamentou não ser ouvido), de especialistas, das polícias que alertam que a lei vai dificultar operações policiais e que avisam ser muito difícil demonstrar que a droga se destina apenas a consumo próprio. Os receios são de que a nova lei possa levar ao aumento do consumo e que facilite o tráfico, por haver uma zona cinzenta que complica a diferenciação entre traficante e consumidor. Há quem diga que se está a abrir uma caixa de Pandora.