Sons e cores podem mesmo ser uma ajuda para adormecer?

Diferentes barulhos, associados a diferentes tonalidades, têm feito sucesso nas redes sociais, com promessas de melhorar o descanso ou a concentração. Apesar da proliferação destas alegações, a ciência ainda não sabe se há benefícios - ou até prejuízo - no uso destes sons.

“Os bebés que usam white noise dormem até duas horas mais.” “Os ruídos ajudam a adormecer, tanto crianças como adultos.” “A fórmula mágica do sono.” São várias e grandes as alegações feitas, aqui e ali, na Internet. Basta escrever “ruídos para dormir” na barra de pesquisa que rapidamente ficamos inundados de páginas que nos prometem uma ótima noite de sono apenas com uma chave mágica: um barulho. Mas este não é um barulho qualquer. Trata-se do ruído branco, castanho ou cor-de-rosa (“white, brown or pink noises” no original em inglês). Há aplicações, vídeos ou publicações que nos chegam sem sequer procurar por elas. E a ciência? O que nos dizem os especialistas sobre o uso destas “muletas” no sono?

Apesar da “popularidade significativa” que estes ruídos têm ganhado no digital, a sua existência e argumentos não são de agora, começa por explicar Andreia Neves, cardiopneumologista com especialidade em sono. Ainda que a moda não seja recente, e que dar novos nomes chamativos, como cores, tenha feito com que a sua utilização ganhe cada vez mais seguidores, a ciência continua sem conseguir dar grandes certezas. Nem pela positiva, nem pela negativa.

Primeiro, destaca a também investigadora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) Andreia Neves, é necessário desmontar a narrativa de que são ruídos completamente diferentes entre si e com funcionalidades distintas. “A revisão científica não fala de uma tendência de um ser mais benéfico ou prejudicial do que outro.” Na mesma ideia de que há um espectro de cores, adianta, “há um de som”, o que não é sinónimo de que a diferença entre eles seja substancial.

Sobre o seu uso, ainda que a ciência não consiga ter, para já, certezas, “há alguma evidência que aponta que, na realidade, até podem perturbar a forma como dormimos”, afirma Andreia Neves. Da mesma possibilidade fala Marta Reis, que pertence à direção da Associação Portuguesa do Sono (APS). “Manter o ruído durante a noite toda pode chegar a causar danos, já que há indicações que apontam que as máquinas de ‘white noise’ fazem um ruído superior ao recomendado, sendo prejudicial para a audição.” Ou, no máximo, especifica, pode causar algum tipo de dependência, especialmente em recém-nascidos: “Deve adormecer-se no ambiente que se vai ter durante toda a noite e se eu adormeço com um ruído branco, se despertar durante a noite, vou ter necessidade de voltar a usar esse som para conseguir regressar ao sono”.

Interromper o sono

A pediatra com competência na medicina do sono esclarece que o propósito maior destes ruídos é mascararem outros superiores. “O que se pensa é que estes ruídos podem ser utilizados para abafar sons mais incomodativos, que esses sim prejudicam, com certeza científica, o sono.”

A especialista salienta que esta moda cresce sobretudo com a acumulação de população nas grandes cidades, em que o barulho de vizinhos, de carros, de tráfego aéreo e de uma série de outras vivências citadinas faz com que, grande parte da população, viva com noites barulhentas. “O que estes ruídos fazem é abafar ou neutralizar os outros e são utilizados como uma espécie de relaxante do ritmo da cidade, para adormecer mais depressa.”

E de que forma é que ruídos altos, incomodativos e repentinos afetam o nosso descanso? “Em primeiro lugar, quando estamos a dormir, o cérebro continua atento ao que se passa”, responde a especialista Andreia Neves. “Se houver um barulho, uma luz, algo diferente do que tínhamos de base, o cérebro faz um pequeno despertar e pode até tirar da fase de sono em que estávamos e passar para uma outra mais leve.” Assim, perturbamos o normal decorrer do sono.

O “white noise” (“ruído branco”, em português) “não tem altos e baixos, é continuo”. Trata-se, de forma técnica, de uma conjugação de todas as frequências existentes a “tocarem” em simultâneo, no mesmo volume. Assim, qualquer outro ruído existente é neutralizado por este “branco”, que contém todas as frequências em si. O “brown” (“castanho”) é semelhante ao branco, mas tem um volume mais baixo. Por outro lado, o ruído cor-de-rosa apresenta os volumes inversamente proporcionais à sua potência, ou seja, as frequências mais baixas estão a um volume superior e as mais altas a um inferior. Sendo, por esta ordem – branco, castanho e cor-de-rosa – considerados “calmantes” em escala crescente.

O ideal é o silêncio

Independentemente de ser possível explicar de que forma o ruído ajuda a mascarar sons efetivamente prejudiciais, “sabemos que o ideal do sono é o silêncio”, esclarece a cardiopneumologista Andreia Neves. Além desta função de mascarar, chamada também de “mecanismo de controlo de estímulo”, Vânia Caldeira, pneumologista, especialista em sono, acrescenta que alguns dos estudos incipientes utilizados para justificar este uso falam ainda da sua capacidade de diminuir a frequência cardíaca, deixando-nos mais relaxados. Mas sendo que nada disto está comprovado pela ciência, “se eu tenho um quarto silencioso, o ideal é não lhe acrescentar qualquer barulho”, seja ele qual for, aconselha a especialista da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP).

A incerteza da ciência assenta, sobretudo, na falta de estudos de qualidade sobre o tema. “Estas investigações envolvem sempre poucos doentes, nem sempre avaliam dados concretos do sono, baseando-se em perceções subjetivas, e não têm em conta o efeito placebo”, descreve Vânia Caldeira.

Mais do que não haver conclusões sobre o benefício da utilização destes ruídos, “o que mais preocupa é que não há estudos dos efeitos a longo prazo”. A profissional da SPP sublinha que, em animais, alguns estudos que avaliam o uso de ruídos “dizem que pode haver surdez” numa perspetiva a longo curso. “Estes barulhos até podem ter algum potencial, mas é impossível recomendar sem antes ter mais certeza científica.”

Marta Reis é também perentória ao afirmar que os estudos existentes até agora não são conclusivos. “Há uma revisão sistemática de 2021 que analisou mais de 30 estudos no tema e, de facto, em mais de metade parecia haver benefício, mas eram estudos de fraca qualidade – que não tinham em conta determinadas características, eram subjetivos ou tinham poucos participantes.”

Não há evidência, continua, que o uso de ruídos, qualquer que seja a cor, “seja superior a uma música relaxante”, exemplifica a especialista da APS. “Há pessoas que relaxam com sons da Natureza, músicas de embalar, vozes ou meditação, e há outras a quem qualquer uma dessas é fator de ansiedade e irritação.” Em suma, cada caso é um caso. E a recomendação de qualquer que seja a estratégia para dormir, segundo Marta Reis, nunca pode estar desligada das preferências da própria pessoa e do que funciona consigo.

Não havendo certezas, o ideal é seguir uma série de conselhos referentes à higiene de sono. Há que fazer “três ou quatro coisas antes do sono que nos deixem relaxados”, indica a especialista Marta Reis. Pode ser um banho ou ouvir uma música. Ou até, adiciona Vânia Caldeira, um ritual com um horário fixo que inclua lavar os dentes, vestir o pijama, entre outros, para que “a nossa cabeça esteja habituada e condicionada para saber que vamos dormir quando fazemos tudo isso”.

Estamos a dormir pior

Para a pneumologista, “a crescente informação nas redes sociais sobre este tema, com ou sem base científica, diz-nos que as pessoas estão a dormir mal – e são cada vez mais jovens”. A médica conta que “as pessoas já chegam às consultas com muita informação”. “Entram no consultório a dizer que fazem determinadas regras, mas depois acabam por se agarrar muito a determinados detalhes que se revelam contraproducentes.”

Um exemplo é o caso de aparelhos eletrónicos modernos, como os relógios inteligentes. “Muitos pacientes dizem que o relógio indica que não têm sono profundo suficiente, mas temos de perceber que, por muito eficaz que a tecnologia seja, para aferir as fases do sono ainda precisamos de ter uma série de fios ligados à cabeça.”

Para Andreia Neves, da FMUP, “não estamos na era da informação, estamos na era da desinformação”. “Cada vez é mais importante, quando alguém fala de um tema, perceber que provas a pessoa tem para falar sobre o mesmo.” A médica admite que, há dez anos, chegou a recomendar o “white noise”, “mas neste momento a utilização frequente ou generalizada não deve ser uma recomendação por parte dos profissionais”.

Uma dificuldade em áreas em que a ciência não tem ainda resposta é a explicação junto dos pais. “Os progenitores procuram uma reposta de sim ou não, porque as redes sociais levam-nos a essa necessidade de certezas.” Mas esta não existe. Por isso, na dúvida sobre quais os prejuízos da utilização de ruído branco, castanho ou cor-de-rosa, o ideal é utilizar, quer seja em adultos, crianças ou recém-nascidos, métodos de higiene de sono já comprovados. “E sempre que haja problemas com o descanso, consultar um profissional é fundamental”, resume Andreia Neves.