As marcas físicas de uma doença não são para sempre

Joana Carneiro reconstrói sobrancelhas de pessoas com cancro e alopecia. Sérgio Carvalho refaz mamilos e aréolas em tatuagens 3D a mulheres submetidas a mastectomia. Mafalda Perfeito coloca extensões em quem perdeu cabelo na quimioterapia.

Uma doença, um problema sério de saúde, as marcas que ficam à vista e que remoem a alma, destroem a autoestima. Não tem de ser assim. Há mãos que cuidam e corações que sentem. Quando o corpo perde uma parte, cabelos e pelos, há intervenções que ajudam. Muito. Ajudam muito.

Em outubro do ano passado, Joana Carneiro, esteticista e maquilhadora profissional, criou o seu projeto “Pigmentos de amor” para oferecer a reconstrução de sobrancelhas a mulheres e homens com doenças oncológicas e alopecia. Fá-lo uma vez por mês, ou mais, dependendo da sua agenda. A sua técnica é a micropigmentação. “A reconstrução da sobrancelha pelo a pelo, com uma lâmina muito fininha, o que dá um efeito realista”, descreve. Desenho pelo a pelo. Como microfios que parecem pelos a quem não os tem nas sobrancelhas. Sem diferenças no olhar, sem diferenças ao espelho.

Joana Carneiro aplica a sua arte antes do tratamento oncológico, quando assim é possível, no seu espaço em Vila Nova de Gaia. E quando os níveis do sistema imunitário estão estáveis. Os benefícios são visíveis por fora e por dentro. “Tem um impacto muito grande no bem-estar e na autoestima. Sentem-se bem quando se olham ao espelho”, garante. A experiência diz-lhe que assim é.

Sérgio Carvalho é tatuador há 30 anos, a esposa é enfermeira, as histórias acabavam por entrar lá em casa naturalmente. Da conversa, passou à ação, ajudar mulheres submetidas a mastectomia. O que antes era esporádico, passou a ser frequente no seu estúdio Wild Buddha Tattoo, em Matosinhos. Sérgio Carvalho reconstrói mamilos e aréolas em tatuagens 3D. Refaz o que a doença levou do corpo no seu projeto tatuagem mamária reconstrutiva com página no Instagram.

No início de tudo, o tatuador reuniu com vários médicos, cirurgiões, queria perceber como lidar com uma questão tão delicada. “Para tentar ajudar. Muita gente não fazia por não saber”, recorda. Divulgou, os apoios não chegaram, continuou o trabalho, e nunca mais parou. O que fazia uma vez por ano, tornou-se mais regular, em cadência mensal. A informação circulou rapidamente do seu jeito para tatuagens com realismo.

Sérgio Carvalho, tatuador, faz reconstrução de mamilos e aréolas 3D a mulheres que fizeram mastectomia (Artur Machado / Global Imagens)

Mafalda Perfeito é cabeleireira, é psicóloga também, e faz extensões a quem perdeu o cabelo durante a quimioterapia. Fio a fio no seu espaço no Porto, junto ao Douro, à ponte da Arrábida, na Foz. “Como um novo recomeço, um ponto final, uma nova etapa, voltar ao que se era antes”, adianta. É terminar um ciclo e começar outro, é voltar à normalidade, à vida de todos os dias com uma imagem sem rasto da doença. “É muito importante para recuperar a autoestima, pôr um rabo de cavalo, por exemplo.” Ter cabelo. Mafalda Perfeito já fez dermopigmentação de sobrancelhas e de mamilos. Agora já não faz.

A cabeleireira de várias figuras públicas aproveita o cabelo que vai nascendo depois do tratamento da doença, a sua textura, a sua força ou fragilidade, para colocar as extensões. Para o encaixe ser o mais perfeito e natural possível, é preciso um certo comprimento. O resultado é avassalador. “O cabelo tem uma importância enorme na autoestima”, comenta.

Joana Carneiro faz a reconstrução de sobrancelhas em duas sessões, a segunda passados 30 dias por causa da cicatrização. “O pigmento está na primeira camada da pele, o organismo tem de reconhecer o pigmento”, explica. Um ano depois normalmente, dependendo da pele de cada pessoa, é preciso voltar para a manutenção. É todo um processo. E é semipermanente, não dura toda a vida. É necessário retocar, avisa.

Joana Carneiro, esteticista e maquilhadora, faz reconstrução de sobrancelhas

Várias situações, várias histórias

“Há várias situações, várias histórias”, conta Sérgio Carvalho que, nestes casos, não aborda o assunto de modo hospitalar. Nada disso. “É uma abordagem muito mais cuidada”, diz. O primeiro contacto é uma conversa para perceber o contexto, a intervenção a fazer, o tipo de cor a usar no mamilo. A primeira consulta é para conversar. A reconstrução é feita no estúdio sem mais ninguém, com os acompanhantes que a cliente quiser levar consigo. “Atendo à porta fechada.” A duração não é muito demorada, depende de um conjunto de circunstâncias a que Sérgio Carvalho dá a máxima atenção. É preciso à vontade, escutar o que é dito ou respeitar o silêncio.

A sua postura positiva ajuda, o trabalho é profissional, as emoções não desaparecem do peito. “As histórias são múltiplas, há histórias que não são assim tão boas, outras em que a pessoa deu a volta à situação. O final é sempre muito agradável, vem um sorriso”, sustenta o tatuador. E é esse sorriso o melhor agradecimento, a sensação de que vale a pena. “Quando se olham ao espelho, veem que recuperaram alguma coisa.” E Sérgio Carvalho não tem dúvidas de quem tem à frente. “São pessoas com muita força, muito positivas. São lutadoras.”

No início deste mês, a cabeleireira Mafalda Perfeito esteve no programa da manhã da SIC, “Casa feliz”, de João Baião e Diana Chaves, com Sara Rodrigues que tinha perdido cabelo por causa dos tratamentos de quimioterapia de um cancro da mama. Agora tem cabelo comprido. Foi uma partilha de experiências, de quem procurou recuperar a sua imagem, de quem o fez num trabalho de intimidade e confiança. Ter cabelo é voltar a uma vida normal. É não ter uma imagem dentro de casa e outra fora de casa. É recuperar a identidade.

Mafalda Perfeito é cabeleireira e psicóloga

Joana Carneiro não esquece o dia em que desenhou as sobrancelhas a um homem pela primeira vez. Um homem de 60 anos, em recuperação de um cancro no pâncreas. A coincidência foi tal que esse senhor chegou à esteticista quando perguntou à filha se sabia de alguém que pudesse reparar o seu rosto. Nesse dia, a filha, em tratamento de um cancro na mama, tinha estado a tratar das suas sobrancelhas com Joana Carneiro. Foi lá, a angústia de ficar sem sobrancelhas desapareceu, ficou surpreendido com o resultado e satisfeito com desenho pelo a pelo de forma mais natural possível.

Joana Carneiro, instalada no número 591 do Largo Estevão Torres, em Gaia, oferece o tratamento depois das histórias chegarem ao seu email [email protected] acompanhadas da devida declaração médica. As doenças são pesadas, mas há sempre formas de dar a volta e recuperar o que se pensava perdido.