Joel Neto

Aquela meia horinha só


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

– Tu prometeste – diz a Marta. – Prometeste-me que, quando as crónicas falassem de nós, nunca seriam ficção.

– Mas eu tenho escrito ficção? Sobre nós?

– Não. Mas não tens escrito sobre as dificuldades. Que as há.

Pois claro que há. Não são poucas, não são irrelevantes, e, por muito que seja o nosso esforço de racionalidade, nunca é a consciência de que todas as fases darão lugar a outras fases ainda, uma fase a seguir à outra – as cólicas, os dentes, as quinas das mesas, os armários dos detergentes -, a minimizar o sofrimento de cada uma delas.

Sim, não nos têm faltado as dificuldades também. Neste momento, por exemplo, lidamos com um desacerto de sono de dimensões ligeiras e resultados majestosos que, dada a combinação ideal de circunstâncias, talvez até se pudesse revelar devastador. Chegada a hora de nova sesta, o Artur adormece sem dificuldades. Mas, ao ser deixado no berço para a completar, abre os olhos como um boneco dos livros de Stephen King, e grande parte do equilíbrio que fomos conseguindo reunir, abrindo-lhe os braços aqui e arrancando-o com as unhas acolá, vem por aí abaixo de novo.

Claro: nós somos um casal razoavelmente neurótico, que sobrevive de trabalhos incertos desenvolvidos a partir de casa, e que de repente deu por si com um bebé nos braços e mais sozinho do que imaginara, para os padrões do campo em geral como para os das ilhas do Espírito Santo em particular. Temos uma pediatra que nos responde a todas as mensagens e uma médica de família que não nos falta com nada. As enfermeiras do Materno, o pessoal das farmácias, o dermatologista mal-encarado, as raparigas da amamentação, os consultores de sono, os psicólogos que forem precisos, os mais reputados cientistas e toda a miríade de charlatães que, juntos, compõem o Dr. Google – não nos falta assistência. Mas, sem avós na vizinhança (porque não há), sem baby-sitters disponíveis (porque não se arranjam) e sem vaga nos colégios (porque só a temos em Setembro), precisamos de deixar o bebé meia hora ao cuidado de alguém, nem que seja para ir comprar polpa de tomate, e temos de parar ambos: um para ir ao supermercado e o outro para cuidar dele. E ainda por cima, ao chegar-se a noite, ou dorme um só ou não dorme nenhum – porque ele, por si, nesta fase que ainda há dias começou e parece já levar dois anos, não está muito virado para perder tempo com essas coisas.

Percebo-o: também nunca gostei de dormir. Mas um bebé que não dorme de dia não vai dormir à noite e um bebé que não dorme à noite não vai dormir de dia (e por aí fora). O cansaço acumula-se, as palavras desacertam-se com os tons, os emails jorram como uma catarata, os telefonemas não param, e depois ainda há a casa, e os cães, e o jardim, e os favores, e o demónio. Às vezes é só no último momento que um de nós pára, apanhado desprevenido pelo sorriso luminoso que ele me envia do canto da sala, ao ver-me de regresso depois de ter ido apenas levar o lixo à rua; ou se apercebe de que, ao fim de duas horas de ensaio da marcha pendurado no pano ao peito da Marta, ele mantém os olhos e as mãos nela, uma em cada bochecha, num embevecimento irreparável:

– Amor? Em que idade achas que os bebés começam a amar?

Portanto, não, camaradas pais: a vossa luzinha não é a única acesa esta noite. E todos nós havemos de prevalecer.

Tenho de falar-vos da marcha.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)