Joel Neto

Amor de mãe


No outro dia correu mesmo mal. Ele tinha perdido o apetite duas noites seguidas, pelo que decidíramos suprimir o iogurte das 16h30, antecipando uma hora o jantar. Só que, naquela tarde, trazia um ar voraz, e ainda por cima eu estava tão cansado que precisei de me sentar 15 minutos a ver a Baby TV e a abrir e fechar os opérculos. Quando o levei para a cadeirinha e me apercebi de que a Marta tinha inscrito no papel coisas como “almôndegas”, “batatas no forno” e “couve salteada”, tremi. Com razão: no momento em que se acabou a sopa, ainda as batatas estavam cruas. Tentei ganhar tempo com uma bolacha, mas ele devorou-a em menos de um fósforo. E, quando enfim lhe trouxe o prato, já estava uma tal pilha de nervos que comeu numa quezília, tomou banho numa quezília e esperou numa quezília pela mãe, para cujos braços se atirou assim que a viu.

É claro: eu podia ter-lhe dado a refeição do dia seguinte. Era bem mais rápida – estava quase tudo no frigorífico. E também podia ter-lhe dado uma papa, que ele refastelava-se todo e ficava ali, gordinho e luzidio, abraçado a mim numa doçura até chegar a mamã. Mas aquelas listas de refeições que a Marta faz são admiráveis. É a mãe menos neurótica que conheço: se o bebé tropeça, “já se levanta”; se leva uma dentada, “para a próxima morde ele”. Não o veste para mostrar, não passa a vida a proclamar dicas de maternidade, não se gaba de que o filho é o mais esperto. Mas, com as refeições, é uma águia. Pondera tudo: o que ele comeu nos últimos dias, o que comeu na escola, o que precisa de aprender a comer. Portanto, quando estou eu ao volante, tento respeitar essas listas. E, naquele dia, o resultado foi ele ficar sem me poder ver nem pintado.

O que se manteve semana fora, porque entretanto se iniciou a chamada regressão dos doze meses, ou eclodiram dentes, ou houve uma crise de gases (só Deus sabe), e esta casa esteve em polvorosa dias. Todas as noites fui ao quarto dele umas cinco vezes – a Marta foi uma só, demorou-se mas acabou por acalmá-lo. E a verdade é que, naquele dia das batatas de forno e da quezília, confrontada com o alvoroço em que nos encontrou, olhou o papel e suspirou: “Ah, eu podia bem ter trocado a refeição de hoje com a de amanhã. Era mais fácil para ti.” Porque, no fundo, é isso que faz: facilitar-me a tarefa para depois eu andar aí, todo faroleiro, a gabar-me de que trado disto e daquilo. Como é ela que se levanta aquela sexta vez, nas noites tenebrosas, e lhe dá de mamar, e o domina, e o apazigua – até ele adormecer.

É mãe, e agora eu percebo melhor esse endeusamento mariano que aí anda há tantos séculos. Tenho a impressão de que o meu pai nunca me mudou uma t-shirt, quanto mais uma fralda – e não foi o único. Já mãe é outro departamento, um Planeta que se constrói de coisas (rotinas, reconhecimentos, cumplicidades) a que nem um pai esforçado chega a ter acesso, e onde um filho se pode redimir, mas também danar para sempre. É um poder demasiado grande: dali virão as melhores coisas, mas também – não raro – as piores. Eu talvez até pudesse ser capaz, mas na verdade não queria.