A química e a finitude da paixão

Uma relação amorosa não vive exclusivamente de paixão e das hormonas e entusiasmo a ela associadas

Falamos de sentimentos, algo intangível. Mas a ciência consegue associar à paixão elementos concretos, como sensações, hormonas e até uma espécie de prazo de validade. O certo é que a paixão não dura para sempre. Porquê?

Talvez saber um pouco mais sobre ciência possa ter um impacto positivo nas nossas relações. Foquemo-nos nas relações amorosas. Desde criança, a maioria de nós é habituada com a palavra “amor” e a saber o que ela significa. Mas será que o que nos é passado durante toda a vida é mesmo verdade? Os filmes, os romances e, mais recentemente, as redes sociais parecem transmitir uma ideia do amor como algo que é estável, pleno e absoluto. Sem contrapartidas. Sem mas. Vamos ao primeiro: mas será que é mesmo assim?

Se não estamos numa relação amorosa a longo prazo, é provável que possamos usar como exemplo a de um amigo ou familiar. O sentimento é sempre igual por anos e anos a fio? É mau sinal a intensidade dos sentimentos abrandar a partir de determinado momento? O fim da paixão, ou das “borboletas na barriga” – já lá vamos – é razão para terminar? E porque é que no início da relação sentíamos algo que agora parece não ser assim? Até uma questão bónus: se temos certeza que amamos alguém, porque é que nos sentimos entusiasmados e atraídos a conhecer outras pessoas? Felizmente, a ciência parece já conseguir responder a estas questões. E, no final, quase que se poderia resumir numa conclusão: paixão e amor não são o mesmo. Nem psicologicamente, nem fisicamente.

Comecemos pelo início. Aqui, o princípio não é o verbo, ou a razão, mas antes algo mais intrínseco. A paixão é como que um cocktail de hormonas que levam a uma cascata de sensações. Já perceberemos quais. Primeiro, é importante avançar que tudo o que se irá descrever como paixão, ainda que pareça positivo, interessante e fascinante, pelo menos para a maioria, tem um prazo. Joana Arantes, investigadora em psicologia social e das emoções, começa pelo número “mágico”: “Tipicamente, a paixão dura entre um a três anos”. A média, concorda a ciência, fixa-se nos 15 meses. Depois disso, “os nossos estudos mostram que o desejo sexual diminui aproximadamente 30%” e, com ele, diminui também o entusiasmo geral com a relação.

As três fases

Mas uma relação amorosa não vive exclusivamente de paixão e das hormonas e entusiasmo a ela associadas. Alberto Lopes, neuropsicólogo, completa a jornada: “A ciência diz-nos que o que tipicamente chamamos de amor, ou seja, uma relação amorosa, do ponto de vista biológico, passa por três estágios distintos”. “E a maioria dos autores aceita que o “vício do amor” passa por um primeiro estágio que é o desejo de uma luxúria”, acrescenta. O profissional explica que as hormonas libertadas e as sensações sentidas nesta fase são uma “estratégia da natureza, quase para nos obrigar a cumprir a necessidade de perpetuação da espécie”. Ou seja, biologicamente sentimos esta atração quase que viciante com o propósito de nos sentimos atraídos e procriarmos.

E ainda que a procriação não seja, atualmente, a razão principal pela qual a maioria das pessoas tem relações sexuais, a libertação de determinadas hormonas quando conhecemos alguém novo que, por algum motivo, nos chama à atenção, mantém-se ativa. E qual é então esta química responsável pela paixão? Alberto Lopes diz que as beta-endorfinas (neurotransmissores que diminuem a dor e facilitam o relaxamento e o bem-estar), juntamente com a adrenalina e noradrenalina (responsáveis por regular o humor, o sono, o apetite, entre outros), libertadas num momento de prazer, com um pico de dopamina a ser também introduzido na corrente sanguínea, causam uma sensação de euforia, que, “de alguma forma, nos leva a um efeito similar à toma de substâncias psicoativas”.

Certas hormonas aqui descritas são igualmente libertadas quando se consome as tipicamente chamadas drogas. A sabedoria popular diz que “o amor é uma droga”. Pode não ser literal, mas, até certo ponto, no que toca ao amor em fase de paixão, a ciência consegue dizer: verdade!

Das hormonas às sensações

Mas se no interior do corpo está a acontecer uma “montanha-russa”, o que se passa no exterior? “Estar apaixonado é, possivelmente, uma das sensações mais intoxicantes e viciantes que a natureza nos concedeu”, afirma Joana Arantes, também docente da Escola de Psicologia da Universidade do Minho. “A pessoa fica num estado de espírito diferente, mais animada, perceciona o mundo à sua volta de uma maneira mais positiva, tem pensamentos recorrentes e obsessivos com a pessoa amada, e até perde, por vezes, o apetite e o sono.” Já para não referir o ritmo cardíaco e a respiração acelerados, a transpiração que aumenta, o rosto corado ou os músculos trémulos.

Todas estas sensações são percecionadas por conta da miríade de hormonas referidas há pouco. E ainda que o descrito seja a experiência mais comum (e percetível) para a maioria, a investigadora realça ainda que, em estudos realizados recentemente no seu grupo de trabalho, “tem-se vindo a mostrar que também existem alterações ao nível da nossa atenção, memória e perceção temporal quando vemos a pessoa por quem estamos apaixonados”.

Antes de falar do estágio seguinte à paixão, voltemos às hormonas. Joana Arantes distingue-as em três funções: atração, sexualidade e ligação. Na referida primeira fase de uma relação, a das “borboletas na barriga”, há a já falada dopamina e ainda norepinefrina e serotonina, responsáveis pela parte da atração e que estão relacionadas com a sensação de bem-estar. “É o que faz com que passar tempo com a pessoa amada seja muito agradável.” Mas se nos referimos a momentos de intimidade sexual, há que ter ainda em conta a libertação de testosterona e estrogénio. Por último, as hormonas responsáveis pela ligação começam a construir a base para as fases posteriores da relação. Nestes momentos, destaca-se “a libertação de ocitocina – também chamada de hormona do amor – e vasopressina”.

O cocktail

Se as sensações sentidas numa fase de paixão por alguém são fruto de um cocktail de hormonas, quer isso dizer que não temos livre-arbítrio sobre quem nos apaixonamos ou sobre o que sentimos? Alberto Lopes acredita que “não é tão extremo”. “Existe ainda alguma margem de escolha e fazem parte do grande momento da paixão elementos tanto físicos, psicológicos como ambientais.” Um dos exemplos mais concretos e de fácil compreensão é a influência da cultura, assinala.

“Se sou educado desde novo a reprimir qualquer sentimento de euforia e entusiasmo pelo outro, isso irá afetar as minhas sensações a longo prazo.” A capacidade de a pessoa olhar para o parceiro desejado “e tentar como que contrariar essa obrigação biológica de vinculação sexual ainda está ao nosso alcance”, considera o neuropsicólogo.

Então, porque é que a paixão acaba? De forma resumida, as hormonas referidas são libertadas em momentos de euforia e entusiasmo. Joana Arantes adianta que, “à medida que um relacionamento se prolonga no tempo, é comum que a paixão diminua, enquanto a intimidade e o compromisso aumentam”, isto porque o casal acaba por viver uma rotina. Numa relação a longo prazo, não é possível experienciar novidade todos os dias. Por isso, “as pessoas atingem um nível estável, porém mais baixo, de excitação em relação à pessoa amada”. E não há nenhum problema, quer seja físico, psicológico ou conjugal, nisso.

O estágio final

Alberto Lopes segue para o “pós-paixão”. “Depois da fase inicial temos o segundo estágio, que é chamado de ‘amor romântico’.” Se antes há uma necessidade de toque, de presença, e de se vincular sexualmente ao parceiro, esta é a fase da solidificação da paixão. Começa a haver uma alteração, não tanto no tipo, mas na quantidade de cada hormona – há agora uma maior libertação, por exemplo, de serotonina, “o neurotransmissor associado à alegria que tem funções de estabilização emocional”.

“Por fim, o terceiro estágio é aquilo que muitos autores gostam de chamar de ‘amor companheiro’, uma fase da construção gradual do vínculo duradouro.” O neuropsicólogo frisa que é aqui que se dá “o amor propriamente dito”, uma vez que há ainda uma grande confusão entre o que é amor e paixão. “Eu nunca amei como amei o meu primeiro amor”, ouve-se muitas vezes. Alberto Lopes desmistifica: “Temos essa sensação porque, na verdade, o primeiro amor, por ser o epíteto da novidade, viveu apenas a fase da paixão, um intenso baralhar de emoções e hormonas, que fazem parecer que o amor que sentimos por alguém durante dez ou vinte anos seguidos seja ‘mais fraco’ do que todo esse misturar”.

A hormona da vinculação

Nesta última fase, a última realmente necessária para manter um relacionamento amoroso saudável a longo prazo, continua Alberto Lopes, “têm ação hormonas como a oxitocina, consideradas pela neurociência como responsáveis pela vinculação e que estão presentes, por exemplo, no momento do parto ou nos períodos de amamentação entre a mãe e filho”.

Ainda que a ausência de paixão, ou das hormonas a ela associadas, não seja (ou deva ser) um problema para o casal, é, na maioria das vezes, por a mudança de estágio da relação acontecer assincronamente entre os dois elementos. “Normalmente os dois estão apaixonados e um deles começa a experienciar uma perda do sentimento de paixão, o que pode trazer consequências negativas para ambas as pessoas envolvidas”, indica Joana Arantes, especialista em psicologia social e das relações.

Sentimentos de descabimento, de baixa autoestima, de desigualdade, de culpa e de perda são comuns. É mais provável que seja até nesta fase que “pode começar a querer procurar-se esse sentimento de paixão, aquela excitação de estar apaixonado, fora do casamento”. Querer continuar a sentir esse turbilhão de sensações e hormonas ao longo da vida é normal, por isso, se o desejo é permanecer em casal, a comunicação, como referido para tantos outros problemas conjugais, é a solução.

Trabalhar a “paixão”

Alberto Lopes destaca que, apesar da existência das três fases, a vivência dos seus estágios não é linear. Ou seja, ao longo de anos de uma relação saudável, estável e duradoura, podemos ir “flutuando” entre estágios, conforme estamos em momentos conjugais de maior novidade e entusiasmo, como nas férias, ou apenas na rotina do dia a dia.

O neuropsicólogo recomenda que o relacionamento seja “alimentado” para que, de quando em vez, sejam experienciadas as sensações da paixão, conjugando-as com as da estabilidade. Passar tempo de qualidade com o parceiro ou parceira, apresentar gestos de carinho e afeto, apostar em momentos de diversão em conjunto, experimentar algo novo e, acima de tudo, a partilha de sentimentos são essenciais para este trabalho conjugal.

Numa outra nota, a investigadora Joana Arantes refere ainda que toda esta dinâmica é a explicação base para o “vício” sentido num relacionamento tóxico – já que “interrupções temporárias, como breves separações, conflitos, discussões e posteriores ‘pazes’, podem reacender sentimentos de paixão, incluindo o seu elemento obsessivo”. Mas isso dará conversa científica para outro tema.