A franqueza é mesmo uma virtude?

A sinceridade, quando desregulada e despropositada, não constitui uma virtude, muito pelo contrário

“Estou só a ser genuíno.” “Não leves a mal a sinceridade.” “Quem diz a verdade não merece castigo.” Quantas vezes já ouviu algo semelhante depois de uma afirmação o ter magoado? Ser sincero é aclamado como virtude, mas há pesos e medidas para que não se caia em excessos. Em contrapeso temos a empatia, que deve entrar sempre em jogo. Onde está o equilíbrio?

Já o filósofo Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) dizia que os extremos pecam por excesso. E que a sabedoria humana vive no equilíbrio entre o excesso e a falta, sendo a atitude a promover a da moderação. Ou seja, nem ser demasiado sincero, nem ser demasiado mentiroso. No século XIX, outro pensador, Friedrich Nietzsche, falava da existência de várias verdades. O que é a verdade? A minha verdade, a tua ou a nossa? Para o alemão, a verdade tem várias facetas e todas elas são válidas. Cerca de um século depois, chegou-nos Michel Foucault com o conceito de verdade diplomática. Por outras palavras, uma verdade consciente das consequências e do impacto que a verdade vai ter no outro. Quem faz a referência a diversos filósofos é Alberto Lopes, neuropsicólogo.

Para o profissional, antes de falar do excesso de verdade e das possíveis consequências dessa atitude para as interações humanas, é importante refletir sobre o que é “verdade”. E essa reflexão não é recente (como podemos comprovar pelas teorias destes e de outros pensadores). Fazendo uma conjugação de todas as ideias de “verdade” e da expressão da “verdade”, Alberto Lopes chega a um resumo: a sinceridade deve ser ensinada de forma empática, para ajudar a desenvolver uma sinceridade emocionalmente inteligente. Empatia? Sinceridade emocionalmente inteligente? Já lá vamos.

Comecemos pelo básico. O excesso de sinceridade pode afetar negativamente a nossa vida e as relações que mantemos com os outros? Sim, considera Joana Coutinho. A investigadora do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho (UM) explica que “a dificuldade do indivíduo para ler as situações sociais no sentido de perceber a melhor forma de comunicar a verdade e o melhor momento de dizer a verdade pode causar alguns problemas ao nível das interações sociais”.

O eu e os outros

A especialista em cognição social refere que, com esta questão, surge um paradoxo: “A necessidade simultânea que temos de, por um lado, manter a proximidade aos outros e, ao mesmo tempo, de assumirmos a nossa agência e sentido de independência”. Ou seja, queremos simultaneamente ser sinceros para com a nossa verdade e ter atitudes empáticas para que os que nos rodeiam se sintam bem e gostem de nós. “A gestão deste equilíbrio é altamente complexa e dela depende um funcionamento interpessoal adaptativo.” Adaptar. É a palavra-chave quando se fala de ser sincero. Devemos adaptar-nos ao lugar e situação em que estamos.

Alberto Lopes volta à conversa para acrescentar uma ideia fundamental: “O cuidado em transmitir uma mensagem é muito importante”. Não importa o que dizes, a forma como dizes é que faz a diferença, poder-se-ia dizer. Em suma, diz o especialista em neuropsicologia , “não temos de dizer inverdades, devemos ser sinceros, mas devemos sê-lo na exata medida em que o outro está preparado”. O outro deve sempre ser tido em conta.

E como aprendemos a ter o outro em conta? Segundo Joana Coutinho, da UM, “a gestão deste equilíbrio é aprendida ao longo de todo o ciclo de vida humano”. Isto é, “em diferentes fases do nosso desenvolvimento acabamos, enquanto seres humanos, por revisitar o paradoxo entre necessidade de proximidade e de independência”. Mas, como em quase todas as questões relacionadas com o comportamento humano, é durante a infância que grande parte das nossas capacidades se constroem de forma substancial. “O papel das figuras de vinculação e da forma como elas próprias gerem este equilíbrio entre elas e na relação com a criança é central.”

As crianças e a sinceridade

A psicóloga Cláudia Frade corrobora a importância da educação na formação desta perceção de sinceridade e dos sentimentos do outro. E afirma que é bem cedo que a ideia de “verdade” e “mentira” se começa a formar. “As crianças são mais sinceras numa fase inicial da infância, enquanto ainda não perceberam os ganhos que podem ter com determinado tipo de abordagem.” Por exemplo, uma criança de quatro ou cinco anos rapidamente responde “não fui eu” a algum comportamento que teve que sabe que deixará os pais chateados.

E como podemos ajudar na construção de uma perceção saudável da “verdade”? A profissional do Hospital de Monsanto, na Amadora, com cuidados focados na saúde mental, frisa que o essencial é “ajudá-los a perceber que podemos pensar e sentir coisas, mas que é importante termos em consideração que existe um outro que tem sentimentos e que a nossa interação com esse outro deve ser adequada”. Em suma, etiqueta de convivência, ou seja, ajudar a criança “a perceber que ela existe numa sociedade e que há formas de estar na sociedade que é importante respeitar”.

Ainda que o acompanhamento dos pais e a educação na infância e em casa seja fulcral, há outros fatores que se vão juntando à medida que a vida avança. A investigadora Joana Coutinho explica que, quando a “criança cresce, as interações estendem-se ao contexto social mais global com os outros familiares, educadores, colegas de escola, vizinhos, entre outros”. “E portanto este processo é também permeável à cultura do indivíduo e ao papel que a verdade e a mentira têm em diferentes culturas nas quais a criança se insere.” Iremos aprender, ao longo da vida, vários conceitos de “verdade” e várias formas de a expressar, dependendo do espaço e grupo social em que nos inserimos.

Sinceridade como arma

Para Alberto Lopes, já na vida adulta, o grande exemplo da utilização da sinceridade como “verdade absoluta” com intenção de ter um efeito no outro é no local de trabalho. “Em interações profissionais, as palavras podem ser armas. A verdade distorcida ou a sinceridade excessiva podem ser utilizados para deitar abaixo, manipular ou diminuir o outro. Tudo isto escudando-se no conceito de verdade.”

Mas será que, afinal, não termos filtro ou não sermos capazes de ler uma situação social e, por consequência, não encaixarmos a nossa “verdade” da melhor forma possível, é um problema para nós como seres humanos, um defeito ou uma falha de personalidade? “Frequentemente lidamos com pessoas que não são capazes de fazer a gestão entre o que pensam e sentem e o que os outros pensam e sentem, e que priorizam sempre o que pensam e o que precisam, mesmo que isso magoe os outros. Podemos aí estar na presença de alguém com um estilo de comunicação agressivo ou manipulativo, podendo até, caso esse funcionamento seja muito rígido e transversal a diferentes situações sociais, ser o caso dessa pessoa ter um diagnóstico de perturbação de personalidade, como por exemplo personalidade antissocial”, avança Joana Coutinho, da área da cognição social.

Já Cláudia Frade acrescenta ainda a ideia de poder estar perante um narcisista, que coloca o seu “eu” e a sua “verdade” acima de todos. Ao conviver com este tipo de comportamentos desviantes, a reação do outro deverá ser afastar-se, para manter os limites do seu espaço salvaguardados.

O efeito digital

E ainda que (tal como vimos no início deste texto) a ideia de equilíbrio entre a minha verdade e a do outro seja discutido desde a antiguidade romana, a Internet parece ter trazido uma mudança a esta ideia de relação com o outro. “Hoje temos dois tipos de sinceridade. Uma é a sinceridade que eu quero fazer parecer para as redes sociais, mas pela qual, na realidade, não estou bem a ser sincera”, argumenta Cláudia Frade.

A psicóloga acredita que, atualmente, “vende-se uma imagem de sinceridade que muitas das vezes assenta numa fragilidade imensa do eu, numa autoestima baixa e numa falta de identidade”. Segundo a especialista, podemos já não estar perante perturbações de personalidade quando nos confrontamos com alguém sincero em excesso, “podemos simplesmente estar a falar de um produto da sociedade atual, que não fomenta a aprendizagem da adaptação ao outro”.

É como se as redes sociais tivessem criado um novo tipo de verdade, a verdade artificial. Quem o cunha neste termo é a investigadora Joana Coutinho. “O que acontece nas redes sociais é que a interação se torna de alguma forma artificializada porque perde uma componente central que é a dimensão não verbal.” Através de um ecrã perde-se a leitura das expressões faciais, o olhar, a postura corporal e todos os trejeitos verbais.

Todos estes são essenciais para fazermos a tal leitura social da situação que nos levará a adaptar a nossa forma de expressar a verdade da forma mais correta. O timing da resposta é outra das componentes em que a Internet dificulta uma relação saudável com o outro, indica Joana Coutinho. “Em contexto real ocorre de forma imediata e nas redes sociais é diferido no tempo, o que perpetua comportamentos de agressão e ataque na medida em que a habitual punição que recebemos quando manifestamos algo de errado só acontece algum tempo após emitirmos esses mesmos comportamentos.”

As máscaras e a leitura das expressões

Aproveitando um contexto recentemente vivenciado em todo o Mundo, a psicóloga Cláudia Frade faz a ponte com a pandemia de covid-19 e com o uso de máscaras. “Temos uma geração de bebés que, numa fase crucial da aprendizagem da interação social, viveu sem conhecer praticamente nenhuma expressão facial, o que poderá mais tarde vir a refletir-se numa pobre leitura do outro em contexto de interação social.”

Já percebemos que a sinceridade, quando desregulada e despropositada, não constitui uma virtude, muito pelo contrário. Mas o que podemos fazer para melhorar a nossa perceção de verdade (e a do outro)? Alberto Lopes, neuropsicólogo, serve algumas dicas. Em primeiro lugar, aconselha que se reconheça a importância da sinceridade nas relações humanas, mas que, simultaneamente, se identifique de que forma a “hipersinceridade” pode impactar o outro. O segredo, diz, é “entender o contexto social e saber como dosear a sinceridade”. “Somos atores sociais e, por isso, cada interação tem um contexto único e ao qual nos devemos adaptar.” A “dica da casa”, realça, é “evitar a sinceridade emocionalmente imprudente”, ou seja, evitar compartilhar de mais com pessoas com as quais não temos confiança ou proximidade.

Alberto Lopes apelida a sinceridade de “potencial arma perigosa”. “Se for demasiado sincero, afasto as pessoas por me considerarem frio. Se uso pouca sinceridade, irei atrair comportamentos falsos e tóxicos.” O objetivo, garante, não é desencorajar a sinceridade, mas termos sempre a consciência de que, sendo demasiado sinceros, podemos ser cruéis para o outro.