Margarida Rebelo Pinto

A casa da partida


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

“Ei-los que partem/ novos e velhos/ buscando a sorte/ noutras paragens/ noutras aragens/ entre outros povos/ ei-los que partem/ velhos e novos.” Quem pertence à Geração X, recorda destes versos da música de intervenção que gostávamos de tocar na viola e de entoar em grupo, num tempo em que a televisão a cores era um luxo e os telefones tinham fios gigantes para podermos ter conversas em privado em qualquer divisão da casa. Depois da Revolução, em 1974, vivemos períodos turbulentos do ponto de vista político, económico e social. O primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo declarava às câmaras da RTP, “já fui sequestrado duas vezes não gosto, é uma coisa que me aborrece”, com aquela maneira de ser tão portuguesa de tratar pequenos problemas que são grandes. Os últimos anos do Estado Novo foram muito difíceis para muita gente, uns emigravam porque no campo passava-se muita fome e o futuro não existia, outros para fugir à guerra colonial. Partiam a monte, percorrendo Espanha a pé. Iam para França, Alemanha e Suíça, os açorianos para os Estados Unidos. Portugal era um país pobre e muito antiquado, anestesiado pelo pulso tenaz de um tirano a quem o povo chamava o “bota de elástico”, por ser obsessivamente agarrado a um par de botas que a fiel governanta mandava remendar e embrulhava para colocar debaixo da árvore de Natal.

Cresci com as fotografias de Salazar e dos seus breves sucessores na sala de aula, aprendi aos oito anos quem foi Salgueiro Maia, lembro-me das ocupações das empresas, das fábricas e das herdades, das imagens bacocas de um vídeo no qual o camponês esclarecido explicava a outro: “A enxada não é minha nem é tua, a enxada é da cooperativa”. Como a liberdade de expressão e de associação eram proibidas em Portugal, o povo nem sabia ao certo o que queria dizer cooperativa, muitos diziam ‘comprativa’ porque também era lá que se podiam adquirir bens alimentares. Já existiam supermercados, mas as prateleiras vazias eram mais do que as cheias.

Este era o Portugal dos pós 25 de Abril. Depois, veio o sonho europeu, que foi pouco mais do que a utilização dos fundos europeus.

Escrevo esta crónica com o coração apertado porque amo o meu país, mas também amo os meus sobrinhos que emigraram. São dois. A mais nova tem 23 anos. Mudou-se para a Holanda onde vai ganhar o triplo do que lhe ofereceram em Portugal. É ambiciosa, inteligente, trabalhadora e disciplinada. Numa geração em que o virtual tomou conta do espírito e do quotidiano, não quer saber do TikTok e pouco liga às redes sociais. Há muito que tem os seus sonhos desenhados e os objetivos definidos para os alcançar. Quer ser independente, ter sucesso, progredir na carreira e um dia voltar com dinheiro para comprar a sua casa. Tem a noção de que, se cá ficar, não vai a lado nenhum. Num texto que deixou para a família e os amigos escreveu: “Fica um quarto vazio e uns sobrinhos que acham que se pode ir à Holanda e voltar todos os dias porque a nova casa da tia é já ali. Este vazio também vai connosco, provoca uma dor física em cada bocadinho de coração que fica cá. É um buraco no coração que estava cheio, de uma vida cheia, de uma vida cheia num país que não dava o suficiente”.

Partem os nossos, os melhores, os que podiam mudar o país, enquanto recebemos um número descontrolado de imigrantes que dormem por turnos em colchões partilhados ou nas malas dos carros quando não estão a conduzi-los. A música de Manuel Freire nunca esteve tão atual. E é tão triste que assim seja.