Três homens à deriva
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Onde andará o terceiro homem? Por enquanto, escapou. A juíza disse que, como este não se encontrava na sala, “todas as diligências celebradas nesse sentido se frustraram”, que “a fim de não retardar excessivamente o início do processo”, e como nem sequer a intérprete conseguira chegar ao tribunal, ia “adiar a inquirição dos arguidos para o momento posterior à chegada da intérprete”. Começava-se ao contrário, pelas testemunhas.
Então, a necessidade prática ultrapassou o absurdo: ali estavam dois jovens marroquinos, perdidos nuns fatos de treino, escuros de pele, desgrenhados, acabados de desalgemar por dois guardas, a ouvirem depoimentos contra si, mas sem perceberem o que ouviam. E eu pensei nestes dois destininhos trágicos, dois marroquinos que cruzaram o Mediterrâneo para cumprir o clichê: vieram roubar. E coisas tão poucas… Alguma vez foi nisto que pensaram, rapazes, foi este sonho que perseguiram, partir vidros de carros e esventrar tabliers, porta-luvas cheios de porcarias, à espera de uma coisa de valor? Para isto desembarcaram em Portugal em 2021, que começou a expansão com a invasão de Marrocos em 1415, e por ali ficou em tragédias, saques, cercos, escravidões, 350 anos de guerra constante?
As testemunhas estavam todas. Entrou a primeira, um dos polícias que os apanhou no círculo, no remoinho do Mercado de Arroios:
– Foi há cerca de um ano. Encontrava-me a circular ali junto ao mercado de Arroios, quando tivemos uma comunicação via rádio que dava conta de que três indivíduos já tinham partido os vidros de alguns carros que se encontravam estacionados nas imediações, na rua Carlos Mardel, e que se encontravam no interior dos carros a assaltá-los.
– Por volta de que horas?, perguntou a procuradora.
– Foi por volta das duas da manhã. Estávamos relativamente perto, não demorámos um minuto a chegar ao local que nos foi indicado pela rádio. Quando chegámos, o que é que verificámos? Três indivíduos, dois dentro de um carro maior e um dentro de um Clio, já com os vidros partidos. Nós trabalhamos à civil. Imediatamente parámos o carro, informámos por rádio que estes indivíduos estavam a efectuar este ilícito, e assim que nos identificámos como órgãos da polícia criminal, como agentes da PSP, os indivíduos fogem. Um, que se encontrava dentro do carro, foge para a direita, os outros dois fogem para a esquerda. O meu colega intercepta logo o que fugiu para a direita e eu vou no encalço dos outros dois que fugiram em direcção do mercado de Arroios. Mais à frente, consigo interceptar um destes indivíduos e, uma vez que já tinha dado a comunicação via rádio, o segundo indivíduo é interceptado à frente por colegas fardados que controlaram a comunicação.
– Resistiram?
– Resistiram sempre à detenção, tentaram sempre fugir, nunca colaboraram connosco, foi necessário usar a força estritamente necessária para os manietar. E foram detidos.
Depois, voltaram ao local. Foi recuperado um iPod que estava no chão, na posse deles nada foi encontrado. Que tesouro encontram em Portugal, um iPod velho de que o dono já nem se lembrava! E os dois homens continuavam a escutar o polícia sem o entender.
– Nesta linha de acontecimentos, conseguimos verificar que, ao longo do percurso dos indivíduos, havia mais três carros com danos no interior. Ou seja, além daqueles dois carros que apanhámos em flagrante delito, havia naquela linha – que vai do mercado de Arroios à Rua Carlos Mardel – mais três carros com os vidros partidos, com consolas arrancadas. Efectuámos reportagem fotográfica desses danos. Tenho a certeza que eram eles, eu nunca os perdi de vista. Os dois veículos estavam um em frente do outro.
A dúvida era sobre os carros anteriormente arrombados:
– Como sabe que foram eles?, perguntou a advogada dos réus.
– Eu não disse que foram eles. Eu disse que no mesmo caminho foram interceptados mais três veículos. A sotora é que disse que foram eles…
Estariam alcoolizados?
– Não me parece que estivessem. O único estado em que estavam era o de terem sido apanhados pela Polícia.
Chegaram um dia à capital marítima, ao cais n.º 1 do Império, à Lisboa das antigas invasões, conquistas, descobertas, destruições dos portugueses. Mas três homens continuaram à deriva em terra.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)