Ramsay Hunt, a síndrome que parou Justin Bieber

O cantor Justin Bieber tem o lado direito do rosto paralisado. Está incapaz de fechar o olho, tem a ponta do lábio descaída e perdeu tensão muscular na testa

Trata-se de uma paralisia facial periférica provocada pelo vírus da varicela. Os sintomas podem incluir vesículas, dor, vertigens e até surdez. Agir rapidamente é fundamental, mas a recuperação total tem que se lhe diga.

“Como podem ver, este olho não pisca, não consigo sorrir neste lado da cara, esta narina não mexe. Tenho uma paralisia completa neste lado do meu rosto.” No mês passado, o cantor canadiano Justin Bieber surpreendeu os fãs ao anunciar, nas redes sociais, o cancelamento de vários concertos. No vídeo, em que fala diretamente para a câmara, sendo notória a imobilização do lado direito do rosto, a estrela pop explica que sofre de síndrome de Ramsay Hunt, algo “muito sério” que o obrigou a uma pausa forçada na carreira. Por quanto tempo? Não se sabe. Vai recuperar totalmente? Apesar do aparente otimismo do cantor, é cedo para dizer. E o que esteve na origem desta paralisia que lhe “congelou” metade da face? Esta é mais simples: o vírus da varicela, cientificamente chamado de varicela zoster ou herpes zoster.

Joana Damásio, neurologista do Centro Hospitalar do Porto, ajuda-nos a perceber como é que este vírus que “ataca” essencialmente na infância, e que é tão familiar à esmagadora maioria da população, pode tornar-se o cabo dos trabalhos tantos anos depois. “Após a sua fase inicial, em que provoca infeção generalizada [a varicela], tem a particularidade de ficar latente em alguns gânglios nervosos. Tanto nos gânglios das raízes sensitivas que saem da medula espinhal – neste caso, quando se reativa, dá origem à zona – como no gânglio geniculado, que existe ao nível do nervo facial, causando uma reação de inflamação.”

Hugo Estibeiro, otorrinolaringologista e coordenador da Unidade de Paralisia Facial do Hospital CUF Tejo (a única existente em Portugal), ajuda a contextualizar o problema. “Cada lado da nossa cara é controlado por um nervo, que é o nervo facial. Falamos de paralisia facial quando este nervo deixa de conduzir impulsos. E porque é que o nervo pode deixar de conduzir impulsos? Há causas óbvias. Quando num acidente há uma fratura em que se corta o nervo, por exemplo. Ou quando há um tumor.” Depois, há as menos óbvias. É aqui que entra a paralisia de Bell, a mais frequente em adultos, atribuída ao vírus do herpes simples. “Nestes casos, é costume o doente dizer: ‘Eu estava bem, alguém me chamou a atenção para o facto de a minha cara estar paralisada e em 24 horas ficou totalmente.’” É aqui que se enquadra também a síndrome de Ramsay Hunt, provocada pelo já referido herpes zoster. As diferenças? “Este vírus, regra geral, é mais agressivo, provoca mais inflamação, uma paralisia mais grave e uma dor muito maior.” Também porque, associadas à inflamação, surgem muitas vezes na concha auricular umas vesículas características do herpes. E grande vermelhidão. O especialista nota ainda que, face à proximidade do nervo auditivo, pode haver registo de outros sintomas. “Surdez, zumbido, vertigem.”

Resta perceber as circunstâncias que abrem caminho para que o vírus se reative. “Acontece sobretudo quando há doenças que provocam uma baixa de imunidade. Uma leucemia, um linfoma, SIDA. Ou até certas medicações.” E isto acontece com muita frequência? Nem por isso. No entanto, como lembra Joana Damásio, também não podemos falar de uma doença rara. “A incidência da paralisia facial na população geral varia entre 15 e 30 casos por 100 000 habitantes (por ano). Destes, entre 4,5 a 18% – depende muito dos estudos – correspondem a infeções pelo vírus varicela zoster.” Números que não devem ser desvalorizados, particularmente quando falamos de um problema com “grande impacto” no dia a dos doentes. “Além de as pessoas ficarem desfiguradas, muitas vezes não conseguem evitar babar-se enquanto comem.”

Proteger o olho afetado

E tratamento, há? Sim. “Na paralisia facial no geral faz-se medicação anti-inflamatória potente, à base de cortisona. Quando suspeitamos que o vírus em causa é o herpes zoster, juntamos-lhe um antivírico oral”, esclarece, deixando um alerta relevante: “Quanto mais cedo for feito o tratamento, maior é a probabilidade de recuperação.” A neurologista estima que, quando a terapêutica é aplicada nos primeiros três dias, três quartos dos doentes conseguem curar-se. Já Hugo Estibeiro defende que, em média, há uma recuperação total em metade dos doentes. E quando não há? Também há soluções, aponta. Desde as cirurgias de reinervação, para as paralisias completas, à aplicação de botox, nos casos em que, ao fazer um dado movimento, o doente não consegue evitar fechar um dos olhos. Ou mesmo à fisioterapia, que pode ajudar a “disfarçar” quando não se consegue recuperar totalmente a amplitude do sorriso. Daí a importância do trabalho complementar, entre as várias especialidades, que, sublinha o clínico, norteou a criação da Unidade de Paralisia Facial que coordena. E onde também se inclui a Oftalmologia.

De volta a Bieber. No tal vídeo partilhado nas redes sociais, o cantor assumiu que não conseguia fechar o olho direito. Algo que de resto é comum na síndrome de Ramsay Hunt.

Daí que também seja essencial proteger o olho afetado. “Fecharmos as pálpebras é fundamental para impedir que entrem bichinhos para os nossos olhos. Por isso, os doentes têm de ir aplicando gotas ao longo do dia e durante a noite devem usar um penso ocular. Caso não o façam podem surgir problemas graves, como a úlcera da córnea.”

Hugo Estibeiro deixa outro conselho que lhe parece particularmente relevante. Sobretudo quando, naquele mesmo vídeo, o cantor canadiano garantiu estar a fazer uma série de exercícios para recuperar rapidamente. Ora, o especialista desaconselha vivamente quem quer que padeça desta patologia a ir por aí. “Fazer exercícios ao espelho, mastigar pastilhas elásticas, tudo isso. Não vale de nada e pode prejudicar, provocando as chamadas sincinesias.” Traduzindo: associações de movimentos em que surge um movimento involuntário e simultâneo de um membro paralisado quando se efetua uma ação com o membro do lado oposto. Ser paciente será mesmo o melhor remédio.