Jorge Braz e a honra de voltar onde foi feliz

A passagem pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro foi curta, mas marcante. Todos o recordam como "o líder". Alunos, colegas, jogadores. Dizem que mudou uma modalidade e uma geração. Vinte anos depois, estamos à conversa com Jorge Braz, que irá receber o título Honoris Causa pela universidade na qual foi treinador, professor e, acima de tudo, um amigo.

Recuemos a 8 de maio de 2002. Acontecia o campeonato universitário de futsal em Guimarães e as emoções já faziam adivinhar quem seria o vencedor. Após uma semana intensa de jogos, chega o duelo decisivo. A por várias vezes consecutivas campeã Lusófona enfrenta a Associação Académica da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (AAUTAD). Parecia estar decidido antes mesmo de começar, mas o inesperado aconteceu. “Disputado até ao apito final, este foi sem dúvida o melhor jogo destes campeonatos”, lê-se, à época, no jornal académico “O Informativo”. A AAUTAD vence o então campeão por 3-2, depois de, nas meias-finais, ter derrotado a equipa da Universidade do Minho, uma casa querida para o treinador do coletivo transmontano.

Falamos de Jorge Braz, hoje com 50 anos. Tudo começa antes da vitória no campeonato universitário. Depois de estar nos comandos da equipa minhota, é convidado, em 2001, a ingressar na AAUTAD. Chega a uma equipa federada com um crescimento exponencial: três épocas, três subidas. Do Distrital à 1.ª Divisão Nacional, a equipa da AAUTAD precisava de assegurar a permanência no primeiro escalão e Braz foi o escolhido. Um coletivo ainda “verde”, era necessário ensinar as bases.

Foi um ano de “aprender, aprender, aprender”, repete Fernando Parente, o então capitão da equipa. “Passámos de ter três treinos por semana para três treinos por dia.” Jorge Braz estava decidido a profissionalizar aqueles “miúdos”.

O resultado não se viu no imediato e, nesse primeiro ano de Braz, a equipa volta a descer de divisão. Meses mais tarde acontece o tal jogo pelo campeonato universitário, do qual saem campeões. Jorge Braz recorda a vitória, mas também o dia da descida de divisão, já que “uma vitória não compensou a outra derrota”.

Tal era a frustração por não ter cumprido o objetivo de manter a equipa federada na primeira divisão que, rebobina Nuno Santos, guarda-redes, “o Braz queria desistir”. “Queria sair da equipa, mas nós não deixámos.” Não eram os resultados que faziam o gosto de Nuno e dos colegas, era a ligação ao treinador. “Depois da AAUTAD estive noutras equipas com técnicos que, na altura, tinham mais nome do que o Braz, mas aos quais ele dava dez a zero na forma de gerir uma equipa.”

(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

A equipa pediu e Jorge Braz não desistiu. Ficou mais um ano a treinar a AAUTAD. Simultaneamente era docente na universidade transmontana, dava futsal no curso de Desporto, uma cadeira que tinha sido aberta para o receber. Mas nem isso dura muito. Fica como professor durante três anos, tendo, no final, a UTAD decidido fechar a tal especialização.

Já lá vão duas décadas desde a passagem de Jorge Braz por aquela instituição. Anos curtos, mas que o enchem de orgulho. O mesmo orgulho que hoje, volvidos 20 anos, sente ao pisar o sítio onde um dia foi feliz. Nesta terça-feira, dia 18 de outubro, Jorge Braz regressa à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) para receber o título Honoris Causa, entregue pelo reitor Emídio Gomes. Uma distinção, diz o responsável da UTAD, justificada pelo que o “Jorge Braz conseguiu revolucionar na modalidade de futsal e na região de Trás-os-Montes”.

Mais do que uma equipa

Revolução. Porque, apesar de a consagração de campeões universitários ser o episódio mais fácil de recordar, Jorge Braz fez muito mais. Havia o centro de treino com os alunos que saíam da especialização de futsal. Havia projetos com as escolas do 1.º Ciclo. Foram campeões universitários também pela equipa feminina. Braz salienta que, “numa equipa, havia 80 atletas a jogar ou em formação”.

“Conseguimos envolver os alunos e a região e acho que isso fez a diferença.” De facto, olhando para os anos seguintes, poderemos considerar que o fez. A região de Trás-os-Montes conseguiu, depois disso, ter três equipas na 1.ª Divisão em simultâneo. “Há quem diga que foi pelo trabalho que eu e os meus colegas desenvolvemos com a formação de talentos. Não sei, mas sei que deixámos um legado.”

Voltamos ao século XXI. No dia 11 de outubro, a seleção nacional de futsal, comandada por Jorge Braz, venceu a Lituânia por 6-0. Algures no balneário, o treinador, que já acumula o título de campeão europeu e mundial – eleito por quatro vezes o melhor selecionador nacional de futsal do Mundo -, reuniu a equipa e afirmou: “O que importa é sermos nós próprios”. A frase não é nova. Já Pedro Palas, atual treinador assistente na seleção e, à época, adjunto de Braz em Trás-os-Montes, recorda ouvi-la no balneário da AAUTAD, em 2001.

A equipa universitária da AAUTAD foi campeã nacional na época 2001/02. No comando estava Jorge Braz (à direita na foto)

E como é ser-se o Braz? Humildade, genuinidade, profissionalismo e liderança são alguns dos adjetivos atirados por Pedro Palas, que, diz, deve a sua carreira no futsal ao colega e amigo. “Eu comecei na modalidade na AAUTAD, por convite do Braz.” Mas, antes disso, Pedro já conhecia o lado humano de Jorge. Andaram na mesma escola secundária, tinham amigos da região em comum, estiveram ambos no Grupo Desportivo de Chaves. “E as características que o distinguem mantêm-se até hoje.”

Agora, Pedro e Jorge trabalham juntos quase diariamente na seleção. “No ano passado foram quase 200 dias em estágio, ele tornou-se uma família para mim.” E, como em qualquer família, seria normal haver dias de desentendimento, mas nesta não há disso. “Foi e é muito fácil ter uma ligação com o Braz.”

Não é o único a dizê-lo. Os elogios são consistentes, perguntemos a colegas, alunos ou jogadores. Seguimos com Tiago Polido, que já vai na quarta temporada no comando do KAZMA SC, no Kuwait. Tal como a equipa atual, o percurso profissional de Polido tem-se pautado pelas internacionalizações, mas o início foi bem no interior de Portugal.

“Fui aluno do Braz durante dois anos, quando abriu a opção de futsal no curso da UTAD, e o que mais me marcou foi a curiosidade e o desconforto constantes que ele nos queria provocar.” A tática do “professor Braz”, como Tiago Polido ainda o chama – “embora sejamos colegas de profissão, não consigo dissociar o facto de ter sido meu professor e tratá-lo-ei sempre assim” -, era nunca deixar que alguém tivesse certezas. Nem ele mesmo. Tiago conta que, muitas vezes, o próprio Jorge Braz não tinha resposta para o que questionava. “Nem eu sei”, repetia vezes sem conta. “Mas deixo-vos esta pulguinha atrás da orelha”, continuava.

As mesmas recordações são trazidas por Fernando Oliveira. Escolheu a opção de futsal sem grande entusiasmo mas “ao fim de uma semana estava apaixonado”. “O Braz tinha essa capacidade de apaixonar os outros pelo mesmo que ele.” Falam do amor ao futsal.

Além de professor do Fernando, agora com 39 anos e treinador do AD Santa Isabel, Jorge Braz foi também o orientador da sua tese académica. “A longo prazo as pessoas só nos vão reconhecer pela nossa competência”, lembra-se Fernando Oliveira de ouvir da boca do professor vezes sem conta. E é assim mesmo que todos olham para Jorge Braz: pela sua competência excecional, dizem. Dentro e fora da quadra.

Profissionalismo e amizade

Apesar do lado profissional que Braz procura nunca deixar cair, também houve os momentos de diversão. Nuno Santos, que foi guarda-redes da vitoriosa equipa da AAUTAD, fala de uma certa distância mantida no início. Faceta que rapidamente foi sendo mostrada em conjunto com uma boa disposição que marcou os jogadores. “Aparecia até nas festas académicas”, assegura Nuno. O capitão e colega de equipa, Fernando Parente, corrobora.

E acrescenta ainda um episódio que não esquece, do grande dia da consagração como campeões. “O jogo era só à tarde e na noite anterior ele acompanhou-nos até um bar que havia perto da competição.” As regras de Braz eram simples: beber dois finos em dez minutos, e nada mais. Mas Parente admite que a festa se prolongou, sempre com a companhia do “mister”. “Acabaram por ser dois finos a cada dez minutos.” E, ainda assim, ganharam.

(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Mas não foram só as memórias com o treinador que ficaram gravadas. Fernando Oliveira, Parente, Nuno Santos, Tiago Polido, Pedro Palas. Todos afirmam que a forma como trabalham é (ou foi) influenciada por aquela figura “que ninguém consegue esquecer”. A forma de olhar o futsal, os exercícios em treino, o método de jogo. São muitas as partes da vida destes cinco colegas, alunos e amigos que têm “a competência de Jorge Braz”.

A par com a competência – e exigência, sempre – Fernando Parente, o capitão, não pode deixar de salientar também a humildade. “Notava-se a felicidade que ele tinha em dirigir uma equipa da região de onde ele é.” Sim, Trás-os-Montes marca Jorge Braz, não só pelo que conquistou em dois breves anos, mas pela sua ligação emocional à terra.

Em Sonim, de onde os pais são naturais, começou a dar os primeiros toques na bola. “Eu sou transmontano. Sou de uma aldeia pequenina perto de Valpaços. Estudei e joguei em Chaves.” Chegou ainda a estar na baliza do Sport Clube de Vila Pouca de Aguiar. Costuma dizer, com orgulho, que é “de trás-das-pedras”.

Os curtos anos em que regressou às origens foram felizes, confidencia à “Notícias Magazine”. “Do ponto de vista desportivo, o êxito não foi assim tão grande, mas foram anos riquíssimos em termos de experiência e crescimento pessoal e profissional.” E ter treinado uma equipa da região é algo que, ainda hoje, o enche de felicidade. Tanta que nem consegue explicar.

“Tenho-me sentido honrado por diversas vezes nos últimos tempos, mas este título é especial e custa explicar porquê.” Não há palavras, diz. “Este reconhecimento leva-me às minhas origens, leva-me ao que fui e ao que sou e leva-me a um momento crucial da minha carreira como treinador: o momento do crescimento.”

Passado, presente e futuro

Olhando para a região de Trás-os-Montes de agora, gostava que o legado que deixou tivesse sido mantido. “Existem alguns clubes de referência na região, nenhum na primeira divisão, e há pessoas apaixonadas, mas acho que falta uma coisa que construímos há 20 anos.” Fala do espírito coletivo.

Jorge Braz sublinha o trabalho importante que foi destacar as competências e os talentos que tinham origem naquela terra do Interior do país, tantas vezes esquecido. Trabalho esse que, diz, poderia ter tido manutenção se, por exemplo, a opção de futsal não tivesse fechado na UTAD, mantendo o foco na modalidade na região.

Apesar de tudo isso, o passado é visto com bons olhos. E esse passado vai sendo recordado entre amigos. Anualmente, Fernando Parente organiza um encontro com aquela “equipa maravilha” da época. Juntam-se, religiosamente, na região onde eram felizes. Infelizmente, a pandemia interrompeu os planos de reunião, que não acontece desde 2019. “Mas iremos voltar a fazê-lo em breve porque o sentimento de família que tínhamos, e que nos foi passado pelo Braz, nunca desapareceu.”

Todos os anos realiza-se o Encontro Geração Futsal AAUTAD. Na foto, o segundo evento, realizado no Pavilhão dos Desportos de Vila Real, em 2013
(Foto: DR)

Sobre o futuro, o treinador prefere não falar. Apenas diz estar focado nas conquistas que ainda tem para fazer com a seleção. Terça-feira voltará à universidade onde foi feliz, como treinador, docente e académico. A distinção com o Doutoramento Honoris Causa será entregue na Aula Magna da UTAD, às 15 horas, e contará com a presença de diversas personalidades do desporto.

E daqui a uns anos? Quem sabe não veremos Jorge Braz novamente por Trás-os-Montes. “Imagino-me muitas vezes velhinho, de volta à minha região de origem, sentado com os meus amigos, a bebermos o bom vinho que por lá há. Seria uma boa forma de passar o fim da vida.”