O rap é feito de mulheres

Marlene Tavares, conhecida por Nenny, atualmente com 19 anos, lançou o EP "Aura" em 2020 (Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

Um dos papéis do hip-hop é criticar as desigualdades. Mas a verdade é que, ao longo da história, prevaleceu a cultura machista e as vozes femininas foram sendo colocadas de parte. Mesmo assim, conquistaram espaço. A custo. O fenómeno de Nenny, o futuro de Máry M e a história de Sweetalk são a prova de que o rap também é feito de mulheres.

Começou pelos vídeos nas redes sociais. Ainda os seguidores não chegavam a poucas centenas, fazia covers de diversos artistas. Antes disso, só as paredes do quarto tinham alguma vez testemunhado o talento e a voz de Marlene Tavares, mais conhecida por Nenny. Em 2019, com o lançamento do tema “Sushi”, tudo mudou. Conta já com dois singles de platina e 199 mil seguidores no Instagram, para além de um reconhecido talento e de uma marca já deixados no hip-hop nacional. Mas, garante, o caminho é mais difícil para as mulheres, num mundo onde sempre conviveu com figuras masculinas e no qual nunca encontrou modelos femininos por onde se guiar. Até se tornar um.

Aos dez anos de idade escreveu a primeira letra, mas a mesma nunca saiu da cabeça. “Tenho uma melodia imaginada e a letra falava de racismo, mas nunca a utilizei.” Talvez um dia, diz. Depois de lançado o primeiro EP, “Aura”, em 2020, somaram-se as participações em projetos, como o Colors, Tiny Desk ou Equal, os prémios, e os reconhecimentos, alguns internacionais.

Mas não gosta de ser reduzida a rapper. “Foi algo fresh porque não havia uma mulher negra de 16 anos a fazer rap, r&b, afro”, entre outras sonoridades. A ligação à música foi lesta, particularmente com sons africanos, dados a conhecer, principalmente, pelos pais, que ainda hoje a inspiram. Já o hip-hop, apesar de familiar, só teve impacto na adolescência. Nenny conta que foi no bairro de Vialonga, concelho de Vila Franca de Xira, que cresceu o gosto pela cultura. “Sempre ouvi hip-hop local dos rapazes do bairro.” Mas não havia referências femininas. Foi Nenny a primeira rapper de Vialonga e, hoje, é ela o modelo de outras. “Sinto o peso positivo de ser uma inspiração para outras mulheres.”

As redes sociais e a Internet, o caminho inicial para Nenny, não eram a realidade quando o hip-hop chegou a Portugal, no final dos anos 1980. Era uma cultura marginalizada e pouco conhecida, dificultando que as vozes femininas se fizessem ouvir, mas as Djamal tentaram. O ano é 1994 e duas jovens partilham o fascínio pelas sonoridades vindas do estrangeiro, numa altura em que as novidades ainda chegavam da boca ao ouvido por quem trazia álbuns “lá de fora”. A arte em que se expressam ideias numa letra rimada em cima de um beat conquistou Sweetalk e X-sista, Ângela Rebelo e Alexandrina Matos, respetivamente. Meses mais tarde, juntam-se Jumping (Tânia Mamad) e Jeremy (Carla) e nascem as Djamal, que parecem ter sido apagadas da memória da música portuguesa. Não há registo de muitas criações femininas dos anos 1980 ou 1990, mas, como prova o caso das Djamal, elas marcaram presença na cultura das rimas e batidas.

Ângela Rebelo (Sweetalk) desligou-se das sonoridades do hip-hop desde que o grupo Djamal se separou, em 1997
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

“Fala-se da cor, fala-se de dinheiro / Mas algo é passivamente aceite pelo Mundo inteiro / Há séculos que se vive nesta obscuridão / De limitar a mulher com a dor da opressão.” A letra de “Revolução agora”, das Djamal, primeiro e único grupo feminino de hip-hop a gravar em nome próprio em Portugal, é transparente e deixa Ângela Rebelo, conhecida na década de 1990 como Sweetalk, pensativa ao recordá-lo. “Continua a ser verdade, não é?”, pergunta.

Paula Guerra, socióloga, professora e investigadora da Universidade do Porto na área da música, corrobora a ideia de continuidade, mas marca também uma tendência para pequenas melhorias. “Neste momento, nesta terceira década do século XXI, já começamos a vislumbrar algumas questões de mudança. Não total, mas algumas incursões.” A razão do aparecimento de mais mulheres na música não deixa dúvidas à docente Paula Guerra: o que marcou a diferença foram a Internet e as redes sociais. “A grande revolução veio por aí. Todas estas mulheres são tributárias da revolução da Internet. Fenómenos que surgem por via deste meio.” Com uma ferramenta de acesso livre, como a Internet, futuros artistas em ascensão deixaram de estar sujeitos às imposições de empresas discográficas, podendo dar os primeiros passos a solo de forma relativamente fácil.

Passaram 27 anos e as Djamal ficaram para trás. Em 1997, no mesmo ano do lançamento do álbum “Abram espaço”, separam-se. “Éramos quatro miúdas sem conhecimentos nenhuns do mundo do espetáculo e, mais tarde, percebemos o quanto fomos enganadas”, recorda, com tristeza, Ângela. Por imposição contratual, conta, “naquelas letras pequeninas que ninguém repara”, foram impossibilitadas de continuar com o grupo, caso contrário, teriam de pagar uma indemnização que não estava ao alcance de quatro mulheres na casa dos 20 anos. Ângela Rebelo rompeu com a cultura, numa atitude de revolta. “Quando o grupo terminou foi um processo doloroso” e tudo o que se fez no hip-hop no novo século é um vazio para a lisboeta, agora com 46 anos.

Ângela Rebelo seguiu com Alexandrina um curso de jovens empresários culturais. Trabalhou em papéis técnicos da música popular portuguesa, sempre o mais distante possível das sonoridades de hip-hop. Agora, é auxiliar de fisioterapia. Já Alexandrina Matos dedica-se à maternidade. Jumping e Jeremy não desistiram do sonho e seguiram sozinhas, com altos e baixos, tendo lançado no ano passado “Siga”, o mais recente tema assinado pela dupla intitulada JJ 2000 fantasmas. No entanto, a carreira é instável e não conseguem viver da arte.

As Djamal fizeram sucesso nos anos 1990. Da esquerda para a direita: Jumping, X-sista, Jeremy e Sweetalk
(Foto: DR)

“Dizer que fomos as primeiras é ingrato, sabe-se lá se em pleno Trás-os-Montes havia uma Maria que tinha álbuns das Cookies e gravava maquetes”, sublinha Ângela. E fizeram muito mais do que o epíteto de primeiras mulheres no hip-hop português. Em menos de três anos, foram mais de 50 concertos. Em 1997, fazem a abertura do concerto dos GNR e o Coliseu de Lisboa testemunha o hip-hop feminino nacional na totalidade. Baterista, baixista, guitarrista, coro. Toda a banda é constituída por mulheres. A mensagem que as Djamal passavam em cima do palco era clara: “Nós também sabemos fazer isto”.

Quando o sucesso não é imediato

Nem todas as que se propõem viver do hip-hop têm o sucesso quase imediato de Nenny. Num mundo masculino, nomes como Capicua, a mais sólida da cultura, Mynda Guevara, artista da Cova da Moura que se distingue pela luta da mulher negra, ou Samantha Muleca, rapper e grafitter brasileira, agora reconhecidas na história do hip-hop, têm carreiras de sucesso construídas durante longos anos. Mariana Marques parece seguir essa tendência de reconhecimento lento. Conhecida artisticamente como Máry M, lançou a primeira música nas redes sociais, “R.A.P”, em 2017. Passaram mais de quatro anos, o EP “Momento certo” e dois singles, mas não consegue viver do trabalho de MC, com o recorde a rondar um máximo de oito mil visualizações por vídeo. Rapper socióloga, como gosta de se descrever, trabalha atualmente no Instituto Nacional de Estatística.

Ao contrário da experiência de Nenny, que cresceu no bairro onde se vive a música e o hip-hop em particular, Mariana Marques esteve sempre distante da cultura. Conheceu o rap quando tinha 14 anos, por intermédio de um amigo. “Com essa idade, podes querer fazer muita coisa, mas não sabes como, porque precisas de exemplos.” E não os havia, até que, mais tarde, encontrou o modelo que tanto precisava na Capicua, e, agora, no braço esquerdo, tem tatuado o verso “Pior do que o meu canto, há de ser o meu silêncio”, da cantora. “Esses exemplos ajudam. Essas mulheres estarem num lugar de destaque dá motivação, porque também és mulher e também podes.”

Máry M, nome artístico de Mariana Marques, lançará em breve um novo álbum, no qual promete uma postura interventiva. A trabalhar atualmente como socióloga, a jovem, de 26 anos, espera um dia conseguir viver do hip-hop
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

A necessidade de escrever sempre esteve presente, mas o apoio não foi uma constante. “Quando és miúda e queres fazer rap, as pessoas não acreditam que vais conseguir. A reação era muitas vezes de torcer o nariz, porque não é comum, ainda menos na altura, uma mulher no hip-hop”, desabafa Mariana Marques, agora com 26 anos. Para a jovem de Alverca, outro obstáculo para as mulheres é a necessidade de dividir a atenção por várias responsabilidades. Entre estudos e trabalho, foram várias as vezes em que a música ficou de lado, apesar de desejar que fosse a prioridade.

E não há retorno financeiro imediato, conclui a jovem que está a terminar um álbum em nome próprio e um projeto conjunto com outras 18 mulheres. Diversas artistas do panorama do hip-hop português juntaram-se, de forma independente, e preveem o lançamento da compilação “Hellas” para breve, um trabalho inédito no hip-hop nacional pelo espaço exclusivamente feminino. Uma forma de contrariar o que se tem feito até aqui, descreve a rapper.

Carolina Costa, diretora da Hip Hop Radio, confirma a ideia de que o caminho é mais longo para as rappers. Num dos programas semanais da estação de rádio, em que dão voz a talentos emergentes, apenas cerca de 5% dos trabalhos que lhe chegam são de vozes femininas. “Quando apanho uma mulher é uma festa.” Para ser ainda mais visível a desigualdade de género, a radialista exemplifica com a liga KnockOut, uma competição organizada de hip-hop que coloca em confronto diversos artistas. “Recordando todas as battles que já vi, não me lembro de mulheres participarem.” Pelo menos, destaca, é agora mais fácil enumerar novos nomes femininos do que nos anos 1990. Mas, mesmo no caso de quem tem uma carreira solidificada desde cedo, não deixa de referir que a diferença ainda é muita. “A Capicua, apesar de reconhecida, está longe de alcançar o sucesso que outros alcançaram.” E não é o talento que entra na equação. “Apenas por ser mulher”, frisa.

A história que não conta com as mulheres

RAPública, primeiro álbum de hip-hop editado em Portugal que reúne diversos nomes da cultura, exclui o grupo feminino mais sonante da época. Sobre o porquê de as Djamal não terem sido convidadas a participar, Ângela Rebelo não hesita na resposta: “Porque somos mulheres”. Mas a exclusão do papel feminino neste universo não fica na década de 1990. O espetáculo “A história do hip-hop tuga”, que realizará a próxima edição em março, na cidade de Lisboa, entre cerca de 40 nomes masculinos, conta com a presença de duas mulheres. A edição anterior apresentava apenas uma. E opções não faltavam. Lady N, Russa, Chong Kwong, entre tantas outras, são alguns dos possíveis nomes apontados por Carolina Costa. “Na discografia, em que tentamos ser o mais imparciais, mostrar trabalhos femininos e masculinos é um trabalho difícil, porque não há tantas mulheres como homens no hip-hop, mas é um esforço que deve ser feito”, realça a diretora da Hip Hop Radio.

O hip-hop ainda é machista? À pergunta, Mariana Marques sorri e acena afirmativamente, acrescentando que a resposta está na ponta da língua. Não é preciso pensar muito, sente-o todos os dias. “A presença da mulher no hip-hop português tem sido filtrada pela opinião e experiência dos homens com a mulher.” A presença das mulheres como primeiro plano na criação foi – e continua a ser – dificultado, mas a sua presença como ícone, musa ou objeto está, desde sempre, presente. Para Nenny, é um dos maiores obstáculos. “As mulheres acabam sempre por ser vistas num sentido estético. O que veste, como se maquilha.”

A investigadora na área da música Paula Guerra defende que esta é uma realidade “transversal a todos os estilos musicais”, o que mostra “que o hip-hop não deixa de sofrer dos constrangimentos da sociedade”, apesar de afirmar que o seu papel é contestá-los. “Seja no indie rock ou no punk, temos visto uma percentagem de 80 para 20 na presença de homens e mulheres, respetivamente.” O problema, diz Paula Guerra, não reside apenas naqueles que dão “a cara”. “Se formos a contabilizar os produtores, os managers e outros cargos, é ainda muito masculino.” Colocando Portugal ao lado de outros países, a investigadora afirma que o patamar de desenvolvimento é semelhante, apesar de realçar que o mercado nacional, a par com questões económicas que restringem os consumidores portugueses, causa ainda mais constrangimentos nas rappers portuguesas para lá dos já existentes para uma mulher nesta indústria.

Nenny começou profissionalmente no mundo da música em 2019 e já soma prémios, reconhecimento e seguidores
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

Mesmo quando o espaço é dado às mulheres, parece haver dois pesos e duas medidas. “Tratamos as mulheres no hip-hop como se estivessem completamente à parte. Estamos a fazer o mesmo que fazem os homens. Por isso, não pode haver hip-hop masculino ou feminino”, remata Carolina Costa. A diretora da Hip-hop Radio, e também amante da cultura desde a adolescência, considera que se “parte logo do princípio de que foram muito mais homens a começar na cultura do que mulheres e, por isso, as pessoas estão mais habituadas a ouvir a voz masculina”. Nenny fala de comparações constantes: “Para mulher até és boa”; “Como rapper mulher és fixe”; “És a única mulher que eu ouço”. E o descrédito acontecia já nos anos 1990. “Chegamos a sair do palco e alguns rapazes vieram ter connosco e disseram ‘vocês são horríveis, essas coisas não se dizem num palco'”, conta Ângela Rebelo das Djamal. “Essas coisas”, enfatiza, eram as temáticas que importavam às mulheres.

Máry M já lançou um tema do segundo álbum, em que promete uma postura ainda mais interventiva e desafiadora dos padrões impostos na sociedade. Ângela Rebelo não descarta hipóteses, mas não tenciona voltar ao hip-hop. Uma coisa garante: quer colocar o nome das Djamal onde ele pertence. “Devíamos pensar em fazer um livro. Contar a nossa história.” E inspirar outras. Nenny vê o futuro com esperança. “Já há mulheres a arriscar e a mudar a indústria. Vai haver mais aceitação e as mulheres vão impor a arte delas e expressar-se da melhor forma.” A jovem, de 19 anos, acredita que o futuro é no feminino e que esta cultura é delas. “As mulheres vão dominar.”