Valter Hugo Mãe

O cachorro lambendo a parede


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A inusitada arte sacra de Efrain Almeida é bem mais vasta, mas eu não supero o acontecimento daquele beijo curando a casa, curando o mundo humano. Sua simplicidade é igualmente sua força inteira.

Qualquer exposição de Efrain Almeida acontece como uma interferência da ternura e do riso na dor. As suas obras pensam o golpe e a cicatriz como quem pondera nossa condição vulnerável, tão digna mas também tão naturalmente miserável. Existem heróis, sim, figuras a que alude por fascínio, mas tudo vai ferido pela inevitabilidade de se ser menorizado, predado, morto. Até os mais bravos, os mais puros ou bem intencionados sucumbem. A tragédia é à espera de cada um.

Entrei no Museu de Arte Sacra de São Paulo e não foi possível resistir ao bando de colibris alinhado e beijando a parede. Começa com eles o certo onirismo de Efrain, afastando o objecto dos significados habituais e arrastando tudo para uma inscrição autobiográfica que parece chamar ao artista todas as narrativas, todas as falhas e virtudes, todas as culpas e todas as absolvições. Não é mais o mesmo, o mundo, depois de cada santo poder ser Efrain, como se cada santo pudesse ser nós mesmos, cada um de nós. Mortos e ressuscitados, redimidos e capazes de milagres pela eternidade.

Há um cão lambendo a parede, chama-se “Lázaro” e convoca o santo de seu nome que, reza a lenda, apiedava-se dos cães, alimentava-os e sarava-lhes as feridas. Por graça, os cães lhe beijavam as feridas também, de onde resulta o ditado popular: “língua de cão, língua de médico”. O cão que lambe a parede lambe o mundo humano. Quero dizer, procura sarar a ferida daquilo que a humanidade construiu. Sinto assim. O Museu e a fé, o passado e o tempo todo, cada interferência liberta coisa da Natureza, o cão sonha curar. Tem um ar divertido ou, mais rigoroso, empenhado, como se houvesse uma alegria em seu gesto. Há muita esperança. O que pode resumir toda a ingenuidade ou toda a beleza que sobra em algum ser. Este cachorro pode ser uma dessas coisas, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Se isso cria diferença em relação ao abalo que nos provoca? Não. Serão assim os que ainda se constituem puros. E isso já não é humano, é só humanamente colocado enquanto ideal que não saberemos jamais merecer.

A inusitada arte sacra de Efrain Almeida é bem mais vasta, mas eu não supero o acontecimento daquele beijo curando a casa, curando o mundo humano. Sua simplicidade é igualmente sua força inteira. Julgo que sonho com milagres assim. Pequenos instantes que espoletem a salvação absoluta de todos os que padecem, mas também de todos quantos não se sensibilizam com nada, com utopia nenhuma, com carinho algum.

Estar no Brasil e pensar em curar toda a gente é a primeira questão colocada. Começar pela beleza de Efrain Almeida pode ser o segredo. Pode ser o milagre. Milagrou em mim até agora.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)