De que são feitos os heróis?

O heroísmo é tradicionalmente associado aos grandes líderes ou a pessoas que fazem coisas extraordinárias. Mas é mais do que isso

Circunstâncias de exceção criam a oportunidade de surgirem heróis excecionais. Mas toda a gente, todos os dias, pode atuar em vez de ficar de braços cruzados. Os heróis comuns também mudam o Mundo. Nem que seja um de cada vez.

“Preciso de munições, não de boleia”, disse Volodymyr Zelensky, quando os Estados Unidos se ofereceram para o retirar da Ucrânia nos primeiros dias de guerra. “Navio de guerra russo, vai-te f**er”, responderam os soldados da Ilha das Serpentes à embarcação que lhes pedia a rendição. “Porque é que estás aqui a invadir o meu país? Vai para casa!”, apelam os cidadãos nas ruas, aos soldados russos, antes de lhes virarem costas e irem fazer cocktails molotov caseiros ou sandes para os combatentes da frente de batalha.

“Slava Ukraini. Heroiam slava!” (“Glória à Ucrânia! Glória aos Heróis!”) tem sido uma das frases mais repetidas nas últimas semanas. Mas o heroísmo tem estado por todo o lado: cidadãos russos saem à rua para se manifestar contra a guerra, sabendo que vão ser detidos; as nações aplicam sanções que lhes vão ser prejudiciais a elas próprias; os europeus acorrem às fronteiras para transportar refugiados e instalam-nos nas suas casas; médicos e socorristas entram no país em guerra para ajudar os feridos; jornalistas de muitas nacionalidades mantêm-se em cidades debaixo de fogo para contar ao Mundo o que está a acontecer.

Esse é o poder da compaixão, da coragem e do heroísmo. “São contagiosos”, diz Marcela Matos, psicóloga clínica e investigadora do Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra na área da compaixão. É a esse contágio que estamos a assistir. “O presidente Zelensky, pela sua liderança, inspirou os outros e motivou-os a fazer o mesmo. Depois, há um efeito de bola de neve que leva a esta capacidade extraordinária de mobilização, muitas vezes contrariando o instinto de autopreservação, em prol de um bem maior: a nossa humanidade partilhada.”

O heroísmo é tradicionalmente associado aos grandes líderes ou a pessoas que fazem coisas extraordinárias. Mas é mais do que isso: é toda e qualquer ação altruísta, que envolva algum risco ou sacrifício pessoal, para tentar promover a mudança. “Defendo que todos nós temos potencial para praticarmos atos heroicos no nosso quotidiano, porque a semente do heroísmo é a compaixão, essa motivação inata para cuidar dos outros, que evoluiu ao longo de milhões de anos e contribuiu para a nossa sobrevivência”, defende a investigadora.

A compaixão está tão ligada ao heroísmo porque, apesar de não implicar necessariamente um sacrifício pessoal, é uma predisposição para prevenir ou aliviar o sofrimento dos outros que nos predispõe a agir. A esta motivação inata junta-se um conjunto de competências cognitivas e emocionais, como a empatia e a moralidade, que nos levam, se necessário, a correr riscos pelo que consideramos mais correto.

É por isso que raramente os heróis se veem como tal. Dizem coisas como “Fiz o que tinha de ser feito” ou “Fiz aquilo que acho que qualquer um faria nesta situação’’ porque estão a ser guiados pelas suas convicções morais e éticas, pelo sentido de responsabilidade pelo outro.

E então, nesse caso, porque é que não somos todos heróis? Bom, porque esta semente do heroísmo que nasce connosco não está sozinha. Coabita, lado a lado, com a da maldade e, sobretudo, com a da apatia.

Heróis, vilões e espectadores

Em 1971, Philip Zimbardo conduziu uma investigação que ficou conhecida como “Experiência da Prisão de Stanford”. Para o estudo, que dificilmente alguma comissão de ética aprovaria hoje em dia, o psicólogo pegou em 24 estudantes da Universidade de Stanford, em Palo Alto, nos Estados Unidos, atribuiu-lhes aleatoriamente o papel de preso ou guarda prisional e colocou-os numa prisão simulada na cave da universidade. A ideia era perceber como as dinâmicas de grupo alteravam a identidade e o comportamento de cada um.

E alteraram tanto que a experiência, com a duração prevista de duas semanas, só durou seis dias. Teve de ser interrompida porque estava a tomar contornos sinistros. Os “guardas” impunham todo o tipo de maus-tratos aos “presos”: negava-lhes comida, tiravam-lhes os colchões da cama, sujeitavam-nos a humilhações de caráter sexual. Os “presos” estavam apáticos e cumpriam as ordens que lhes eram dadas. Os 24 estudantes, previamente saudáveis e perfeitamente normais psicologicamente, demoraram menos de cinco dias a transformar-se em sádicos ou zombies, conforme o grupo a que pertenciam. E porquê? Por causa do contexto.

A isto havia chamado Hannah Arendt, já em 1963, “a banalidade do mal”. No seguimento do julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém, a filósofa apresentou uma ideia polémica: o responsável nazi, defendeu, não era um monstro maléfico ou uma pessoa especialmente perversa. Não parecia sequer um nazi fanático ou um antissemita feroz. Era apenas um burocrata entediante, que assinava documentos e cumpria ordens sem questionar. Que a sua assinatura fosse para deportar milhões de judeus para campos de concentração ou para outra coisa qualquer era-lhe indiferente – fazia o que achava que era esperado dele naquele sistema. Então, sustentou Arendt, o mal não está só nos planos perversos e desejos sádicos de poucos, mas também numa multidão de gente banal que, num contexto específico, perde a capacidade de julgamento moral, se conforma às normas e se torna cúmplice porque nada faz.

Dividir o Mundo entre os bons e os maus é muito confortável, mas explica pouco. “Não explica, certamente, o holocausto e outros genocídios”, considera Mariana Reis Barbosa, professora na Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa e investigadora no Centro de Investigação em Desenvolvimento Humano. “Aquilo a que assistimos, nessas situações, é ao mesmo que mostram os estudos de Zimbardo e as observações de Hannah Arendt: em determinados contextos sociais, pessoas aparentemente normais fazem coisas que seriam impensáveis para elas próprias anteriormente e que os estudos de personalidade não conseguem prever.” Porque – e esta é a grande questão – o contrário de um herói raramente é um vilão. A maioria das vezes é um espectador. “Claro que há indivíduos com predisposição para cometer atrocidades, com personalidade antissocial e psicopatia, mas depois há o papel da maioria enquanto agente passivo do que está a acontecer. Toda a gente diz: ‘Eu jamais me conformaria com esta situação’, mas os estudos mostram que não é assim. Face às figuras de autoridade, à influência dos pares e à pressão para conformidade social, as pessoas dão por si a fazer coisas que diziam que não fariam. E ninguém é imune a isso”, alerta a investigadora em psicologia da paz e heroísmo.

Mas este é um problema que traz consigo a solução: se o que distingue as pessoas capazes de atos compassivos e heroicos das outras não são as características individuais, mas o contexto, então, o heroísmo pode ensinar-se. Alertar para a possibilidade da banalidade do mal é incentivar o seu oposto, a banalidade do bem.

E foi isso mesmo que Philip Zimbardo, com tudo o que aprendeu no estudo da Prisão de Stanford, começou a fazer há mais de 20 anos: fundou o Heroic Imagination Project (Projecto da Imaginação Heroica), uma organização não-governamental que incentiva cada um a ser um herói do quotidiano. Treinam professores e alunos para que cada um possa ser um agente de mudança, capaz de contrariar a apatia e iniciar um efeito de contágio positivo.

Treinar a imaginação heroica

O Projecto da Imaginação Heroica está presente em vários países, incluindo em Portugal, onde é coordenado pela investigadora Mariana Barbosa. Ao longo dos últimos três anos, já trabalharam com mais de uma dezena de turmas de escolas na zona Norte do país, com alunos entre os 9 e os 16 anos. Em cinco sessões, adaptadas à idade, mostram-lhes que todos podemos ser heróis. Basta querer ajudar, estar atento aos outros, fugir dos preconceitos, não ser um mero espectador e fazer boas escolhas.

A abordagem e intervenção assenta em três princípios fundamentais, explica Mafalda Gomes Santos, psicóloga e investigadora da Universidade Católica do Porto, que também faz parte da equipa do projeto: “A desconstrução da ideia idílica de herói, (…) a descoberta dos obstáculos ao comportamento heroico, ou seja, os processos psicológicos que, por vezes, nos impedem de sermos heróis, como por exemplo do comportamento bystander [comportamento de espectador] e da difusão da responsabilidade, e o treino para uma ação objetiva, segura e eficaz perante as situações desafiantes do dia a dia, que podem passar por consolar um amigo num dia menos bom; fazer voluntariado; ou ligar para os serviços de emergência perante uma necessidade”.

Usam dois conceitos centrais criados por Zimbardo: o power of one (o poder de um) e o power of two (o poder de dois). “O power of one remete para esta ideia de que basta que faça de forma diferente para que outras a sigam. Nós vemos isso na rua: se está alguém caído no chão a precisar de ajuda, podem passar muitas pessoas sem ajudar, mas basta que uma pessoa pare para que muitas outras façam o mesmo. Uma pessoa faz a diferença, muda a situação”, observa Mariana Barbosa.

Mas ninguém quer que as crianças e jovens “se armem em heróis” na pior aceção das palavras, correndo riscos desnecessários. E isso é o power of two: chamar outros a ajudar. “Por exemplo, numa situação em que presencia bullying, a criança, depois de escolher fazer alguma coisa e não ficar apenas a assistir, não tem de se envolver fisicamente, correndo riscos, pode ir chamar uma funcionária ou usar o telemóvel para ligar a alguém.” Isto é o treino da imaginação heroica: antecipar situações e cenários em que há o risco de não fazemos nada e pensar previamente o que se poderá fazer.

Ser um herói é agir na medida das possibilidades e das responsabilidades. É fazer alguma coisa. Seja essa “alguma coisa” ficar no país a que se preside durante a guerra, sair à rua do país que ataca como forma de protesto, acolher em casa alguém que precisa ou fazer uma doação que ajude. Ou menos ainda, garante Mariana Barbosa. “É tudo sobre cultivar esta lógica: se há alguma coisa que é possível eu fazer por alguém, eu sou a pessoa que a vai fazer.” O primeiro a quebrar a inação dá o exemplo a todos os outros.