As palmadas podem ser educativas?

Palmadas ou qualquer castigo físico são sempre de evitar, segundo Jorge Rio Cardoso, professor universitário, autor de vários livros na área da Educação

Bater deixa marcas, transmite que a lei do mais forte prevalece, que a força resolve conflitos. Não educa, apenas pune, seja qual for a intensidade e o contexto. O que fica na cabeça dos mais novos?

“Uma criança de ano e meio aprende a ligar e a desligar a televisão, está encantada com essa magia, quer partilhar a novidade. Os pais estão a ver o telejornal, dizem-lhe para parar uma, duas, três vezes. Nada. O tom de voz torna-se mais sério. A criança continua contente, fica um pouco confusa. Os pais irritam-se, dão-lhe uma palmada, retiram-lhe o comando da mão.” O cenário é traçado por Tânia Gaspar, psicóloga clínica, professora universitária. “O que sente esta criança? Confusão, tristeza, incompreensão… Numa próxima vez pode não experimentar coisas novas ou não as partilhar com os pais, ou então vai fazer outra vez para ver se percebe o que aconteceu, levando a um ciclo cada vez mais tenso e agressivo.” O que fazer? Deixar a criança ligar e desligar a televisão o resto da noite? Talvez não. “Pode-se prevenir, se é assim tão importante para os pais que a criança não os incomode enquanto estão a ver o telejornal, assegurar que está a desenvolver uma atividade interessante e segura durante esse tempo ou colocar o comando fora do alcance da criança.”

Tânia Gaspar dá mais um exemplo. Um menino de sete anos recebe um carro telecomandado, bastante caro, está feliz, quer mostrar a prenda aos colegas da escola. Coloca o carro na mochila, apesar de os pais lhe terem dito que o brinquedo não é para usar fora de casa. Os pais descobrem o carro na mochila. Hipótese 1: palmada e carro retirado. Hipótese 2: levar o carro para a escola, se avariar, fica sem ele como castigo. Hipótese 3: o carro pode ir para a escola, se houver danos, compra-se outro igual. Hipótese 4: explicar que a vontade de partilhar com os colegas é legítima, que se trata de um brinquedo sensível, que há probabilidade de passar por muitas mãos e estragar-se, procurar alternativas (o brinquedo ficar à guarda da professora). Provavelmente, a última hipótese terá melhor resultado, um contributo pedagógico e emocional mais positivo.

Margarida Crujo, pedopsiquiatra, autora do livro “O meu filho não precisa de rótulos”, não tem dúvidas. “As palmadas não são educativas. Elas surgem de momentos em que os adultos não foram capazes de conduzir as crianças a determinada ação, tendo-se desregulado do ponto de vista emocional e perpetrado um gesto agressivo.” No imediato, pensa-se que a palmada tem o efeito desejado, mas não é bem assim. “Mais do que uma aprendizagem, o que demove a criança no momento é uma reação face ao inesperado ou até mesmo medo”, sustenta.

Palmadas ou qualquer castigo físico são sempre de evitar, segundo Jorge Rio Cardoso, professor universitário, autor de vários livros na área da Educação. Duas palmadas são mais do que duas palmadas, é a mensagem que passa e as marcas que ficam. O modelo do medo, do receio de represálias físicas, a lei do mais forte. Quem manda pode punir. “Há autores que veem nesta educação o prenúncio de violência doméstica”, comenta. “Um castigo parece, e é, uma vingança: ai bateste no teu irmão? Partiste o vaso da vizinha? Então vai já para a cama, sem comer sobremesa e ainda vais levar duas palmadas.” Uma palmada é sempre uma agressão. E não só. “A aplicação de castigos físicos passa a ideia errada de que os problemas se resolvem com violência”, refere Jorge Rio Cardoso.

Obedecer sem compreender?

O tempo das reguadas e orelhas de burro nas escolas passou à história. As teorias de aprendizagem e de desenvolvimento demonstram que eram métodos pouco pedagógicos e até humilhantes. Essas práticas prescreveram, hoje fala-se de palmadas, da sua eficácia e dos seus efeitos. “As palmadas são punitivas”, afirma Margarida Gaspar de Matos, psicóloga clínica, psicoterapeuta, professora e investigadora do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, especializada em terapias cognitivo-comportamentais.

Primeiro, a explicação prática. Do ponto de vista da aprendizagem, as palmadas indicam que certo comportamento não é desejável. “E como as palmadas não são agradáveis, as crianças aprendem.” Segundo, ler nas entrelinhas. O problema é que se aprende outra coisa. “O modelo adulto de como se deve dizer a outra pessoa que o seu comportamento não é adequado, isto é ‘bater’.” “Na verdade, quando batemos numa criança estamos a ensinar duas coisas: que não se deve fazer ‘aquilo’ e ‘o que deve ser feito quando se quiser alterar o comportamento dos outros’. É a educação pela violência como princípio, mesmo que ‘não doa quase nada’”, acrescenta Margarida Gaspar de Matos.

Não arruma os brinquedos? Não vai para a mesa à terceira ou quarta chamada? Estica a corda no horário de regressar a casa depois de uma saída com os amigos? Os pais repetem vezes sem conta a mesma coisa. “A sua autoridade está a ser posta em causa, a criança não está a aprender para a vida. Aplicar aqui as palmadas só piora o problema”, garante Jorge Rio Cardoso. Segundo Tânia Gaspar, é uma forma de comunicação agressiva, um modelo de resolução de conflitos que pode ter resultados negativos na criança: baixa autoestima, baixa autonomia, passividade na relação com os outros ou agressividade nas relações interpessoais. Uma palmada, várias mensagens. Quem manda é o mais forte. Obedecer sem compreender. Resolver com agressividade.

Há fatores a ter em conta. A idade da criança, as suas características e personalidade, a frequência das palmadas, a intensidade com que se bate, o estilo educativo, a relação com a violência, a descrença no poder do diálogo e das palavras. Ou todo o seu contrário. Margarida Crujo faz as devidas comparações. “Uma criança que cresce num ambiente de não violência, aberto ao diálogo e à diferença, terá uma ginástica muito mais ampla na resolução de problemas através da conversação, assim como regulação emocional mais vantajosa, se a compararmos com uma criança habituada a um contexto onde a impulsividade e o inesperado são características dos gestos educativos predominantes.”

O que fica na cabeça depois de uma palmada? “A questão é a enorme extensão dos ‘efeitos colaterais’. Estamos a ensinar como se regulam relações interpessoais com uso da força pelo mais forte”, adianta Margarida Gaspar de Matos. Educar, sublinha Margarida Crujo, implica organização e segurança, amparo nos passos a dar. “Esses passos são tendencialmente livres, mas precisam de regras, de limites, de estruturação para que sejam dados em conforto e confiança.” Há consequências positivas ou negativas de acordo com o comportamento. As negativas, para Margarida Crujo, têm de ter um nexo de causalidade, justificação, duração de um dia no máximo, para que se cumpram e para que o dia seguinte seja “uma oportunidade de um recomeço limpo”.

Regras firmes, respostas serenas

A família no início e no fim de tudo. Os laços afetivos, sentimentos de pertença, relações de amor baseadas no compromisso pessoal, interdependência, intimidade. Tânia Gaspar destaca relações, dinâmicas, estilos parentais, o suporte familiar, estratégias de resolução de conflitos. “Em suma, o desenvolvimento saudável encontra-se no difícil e complexo equilíbrio entre o afeto, a supervisão e adaptação às regras familiares e sociais”, observa. Seguem-se perguntas a que a especialista dá respostas. Qual o papel das palmadas neste contexto? Nenhum. “Há momentos certos para dar palmadas? Não. Os pais têm um papel regulador? Sim. Os pais têm função de transmissão de regras e valores sociais? Sim. Através das palmadas? Não. Através do afeto, supervisão, comunicação e muita paciência e repetição.”

Regras? Sim, poucas e firmes, respostas robustas e serenas, de acordo com Margarida Gaspar de Matos. “A criança aprende os custos de cada comportamento inadequado (estes custos não têm de ser expressos em agressão física ou psicológica).” Há o outro lado. “Podemos também tentar um plano de elogio de comportamentos adequado, lembrando-nos de que estamos a ensinar o que fazer, e a ensinar como se ensina.”

Quando se infringem regras, há consequências, sanções com racionalidade. Não fez os trabalhos de casa, não há brincadeira. “Gritos, alterações de voz, palmadas, são não só dispensáveis, como inconvenientes, no que à educação diz respeito”, sustenta Jorge Rio Cardoso. Disciplinar é importante. “Os jovens têm de interiorizar regras, sem isso estarão condenados ao insucesso escolar, já que a escola tem muitas regras. No entanto, há alternativas às palmadas que talvez possam até ‘doer’ mais do que os castigos físicos”, acrescenta.

Disciplinar, sim, mas como? Primeiro, definir muito bem as regras a cumprir, o que se pode ou não fazer, quais as linhas vermelhas. Com exigência, sem facilitar. Segundo, exercitar as regras, criar rotinas, deixar bem claro quais as consequências de não respeitar essas regras. Terceiro, cumprir as consequências de infração às regras. “Cumprindo esta trilogia, será o jovem a castigar-se a ele próprio e não tanto os pais. O castigo nunca será físico, mas antes de outra natureza: privação de tempo livre de brincadeira por oposição a tempo para refletir sobre o que acabou de fazer”, frisa Jorge Rio Cardoso. As palmadas não são educativas. Pelo contrário.

Propostas para substituir palmadas

  • Os 5 mandamentos da exigência. Jorge Rui Cardoso criou um esquema para ajudar os adultos a acabar com palmadas ou castigos. Coerência, consistência, cumprir o que se promete, explicar com pedagogia, usar o princípio da reparação da situação.
  • Os primeiros anos de vida são permeáveis à necessidade de limites, de sinais organizadores para que uma criança não se sinta à deriva no mundo que começa a explorar. Com amor, sem violência física.
  • Pensar e agir. Transmitir com afeto, ser assertivo, explicar, esclarecer, negociar, analisar situações e alternativas, tomar decisões, lidar com as consequências.
  • O ambiente familiar deve ser seguro, tranquilo, sem gritos ou discussões. Um ambiente sadio é organizado com regras e disciplina.