Valter Hugo Mãe

Acerca do corpo humano


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Ainda sou o mesmo que não pode usar um poema da Maria do Rosário Pedreira impunemente. Pago um preço cardíaco por cada verso.

A primeira vez que fui encontrar a Maria do Rosário Pedreira ia em fanicos pequenos, uma mudez que não me deixava respirar. A timidez e a admiração impediam-me qualquer normalidade. Foi o meu ex-sócio quem lhe pediu que nos recebesse, era sempre mais bravo e sem demoras. Eu ia com três ou quatro poemas de amor na memória, poemas tristíssimos que a Rosarinho publicara em seus livros de sensibilidade íntima que tanto me explicavam também.

Foi muito redentor que o tempo pudesse fazer da Rosarinho uma amiga. A distância e a ausência nunca diminuirão meu carinho e minha admiração. Quando escolho provas de que sobrevivi, mais do que arrastar o meu corpo humano por aí, elenco invariavelmente a ternura pela Rosarinho, o que passámos juntos, como sonhámos juntos por uns anos com tanto empenho e maravilha.

Se o facto de ter sido minha editora me orgulha, o facto de ser uma das minhas poetas mais imediatas faz-me para sempre seu humilde e grato admirador. Ainda sou aquela alma em vidros que se atrapalha com nicos de amor e suspira com qualquer ternura de um filme. Ainda sou o mesmo que não pode usar um poema da Maria do Rosário Pedreira impunemente. Pago um preço cardíaco por cada verso. Pago entusiasticamente, medindo ainda meus sonhos, minhas perdas e, afinal, minha enorme resistência, que é a grande surpresa de toda esta equação.

Há pouco, a Quetzal publicou novo livro dessa poeta que o Pedro Mexia chamou de “avara”, por ser de tão rara edição, tão pouco escreve ou nos deixa ler. “O meu corpo humano”, assim se chama a colecção de inéditos e dispersos onde podemos regressar ao sujeito poético que matura para se apoderar cada vez com menos assombro do que perdeu, do que perde, de quem ama ou amou, do toque eventual, do tempo que é outro, tudo de outro modo no acontecimento da mesma sensibilidade de sempre. É o mesmo sujeito poético a braços com suas ilusões e ansiedades como se mais nada criasse profunda ilusão ou ansiedade, apenas lucidez. Eu julgo que a poeta da Rosarinho foi sempre lúcida, mas era sobretudo esperadora, como quem se magoava no tempo gasto. Hoje, o tempo gasto é uma conquista que foi feita e quanto aconteceu vira património. Já não é necessário esperar e o que há é colhido sem estupefacção porque é fruto de um espírito que, enfim, se tem inteiro em seu lugar e seu instante.

“Do que se passa atrás de / mim, prefiro não saber; a / menos, claro, que tu decidas, // à traição, beijar-me a nuca.” Os poetas também aprendem. Nunca tive dúvida de que lemos e escrevemos poemas pelo ofício da sabedoria. Sei muitas coisas por passar a vida a ler Maria do Rosário Pedreira. Haverei de saber muitas mais, por mais avara, terá de escrever um outro livro, nem que só mais um verso onde, outra vez, se contenha tudo.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)