Valter Hugo Mãe

A pessoa que cuida


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

As famílias funcionam assim. Nos respectivos sofás e munidos de telefones, todos são brilhantes a gerir os problemas dos outros.

A pessoa que acontece de cuidar de alguém vai ficando à distância, como uma ilha que navega para o meio de mais e mais água. São pequenos gestos que se acumulam e que se normalizam nos seus dias e que paulatinamente vão disciplinando qualquer outra agenda, qualquer outro compromisso. É algo que se estabelece primeiro num enfoque mental. Vamos pensando cada vez mais no que é bom fazer para que a pessoa cuidada esteja confortável e feliz. Com isso, que pode ir de lembrar de comprar água a decidir trazer um presente, quem cuida vai habituando seu mundo à função do outro.

Com o tempo, com as crescentes necessidades e o sempre mais intenso enfoque mental, a pessoa que cuida não consegue parar diante de um pôr-do-sol sem a impressão culpada de estar à pressa, sem sossego para deleites nem demoras. Com o tempo, a pessoa cuidada demite todas as outras de a acudirem, porque se sente segura apenas com quem já se aprisionou, com quem se compadeceu primeiro, com quem foi obviando as pequenas e as grandes coisas, até ser a que mais as conhece. Talvez, a única que as conhece. Então, sim, como ilha a partir, quem cuida parte também.

Digo mil vezes a um amigo cuja irmã cuida da mãe que a melhor maneira que terá de proteger a mãe é ajudar a irmã. Se não se pode substituir a ela, o melhor que pode fazer pela mãe é escutar a irmã e saber o que esta conta das exigências diárias e da solidão que aumenta. Se o meu amigo procura interferir, telefonando iluminadamente à própria mãe e procurando instruir para novas maneiras e novos costumes, o mais que faz é agredir a irmã, que se vê encurralada pela realidade que apenas ela vê nua e crua e pela delirante intenção de outros procurarem treinar o jogo a partir do sofá a muitos quilómetros de distância.

As famílias funcionam assim. Nos respectivos sofás e munidos de telefones, todos são brilhantes a gerir os problemas dos outros. Há uma lucidez esfuziante para quem não vive as coisas. Fica tudo muito simples. É como gerir animais domésticos. Dar ordens é sem emoção, porque não se medem as sísmicas implicações de qualquer alteração. É, contudo, mais fácil para quem treina no sofá dar umas opiniões muito seguras do que levantar o rabo, mudar sua própria agenda e marcar presença. Demitidas desde sempre de qualquer papel, qualquer marmita de bolo-rei que tragam numa segunda-feira vai soar-lhes a uma refeição de matar a fome para um mês. Se o bolo-rei for da Pastelaria dos Navegantes, então é um luxo para deixar qualquer velhinha feliz por dois meses. Com isso, as incessantes necessidades de todos os santos dias ficam, naturalmente, a cargo de quem não se pode iludir nem adiar. Comer é uma tarefa de todos os dias. Raios partam tão aturada vulnerabilidade.

Dito isto, julgo agora fundamental a criação de mecanismos para apoio a quem cuida. Informação útil que oriente para as infinitas necessidades que, subitamente, estão nas mãos de quem jamais imaginou que a vida poderia fazer-se de tanta solicitação e desamparo.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)