Valter Hugo Mãe

22 anos


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Ficar sem pai não me fez adulto. Muito ao contrário. Vivo à cata de sinais de apoio, cada vez mais místico, sem estar francamente seguro do que decido.

Passam, precisamente hoje, 22 anos desde a morte do meu pai. Era também um domingo, estávamos no Hospital de S. João, onde a vida e a morte são industriais, e esse absurdo foi consumado. A racionalidade tornou-se uma imitação por decoro, porque algo se revelou para sempre como sem sentido, uma certa ideia que solicita nosso pensamento mas que jamais permite solução. Até agora, se houver uma trovoada forte, um tabuleiro de xadrez em alguma mesa, um estorninho, uma bata de enfermeiro, algo se baralha e eu penso por um segundo que, ao abrir a porta do quarto, vou encontrar o meu pai a matutar nas palavras da imensa enciclopédia. Perguntava por notícias grandes, queria água, anotava estratégias para jogar damas e organizar a família. Vivia obstinado com a convicção de que se podia definir os papéis de cada um a partir de um arrazoado de palavras que militarizassem funções e sentimentos. Era um sonhador à antiga. Já era bastante absurdo bem antes da morte.

Ficar sem pai não me fez adulto. Muito ao contrário. Vivo à cata de sinais de apoio, cada vez mais místico, sem estar francamente seguro do que decido. Era mais fácil, de facto, quando podia contar com a sua opinião, ainda que me sejam inequívocas as suas limitações e o quanto tanta de sua bravura era mais esperança do que certeza ou poder. Os pais são sobretudo obrigados a confiar. Têm de nos fazer sentir que está tudo bem e vai ficar tudo bem, mesmo quando não fazem ideia do problema, não estão sequer atentos o suficiente, não lhes interessam os sobressaltos cândidos dos filhos perante o tamanho ainda pequenino dos assuntos. Os pais têm de apontar com firmeza o caminho, nem que o tenham de fazer à sorte, porque tantas vezes estamos todos à sorte e assim tem de ser. E os filhos caminham e vão descortinando parte do segredo, até saberem perfeitamente que o que havia não era um conhecimento do que estaria adiante, era a garantia de que poderiam voltar. Foi isso que me acabou pela metade a 9 de Janeiro de 2000. A possibilidade de voltar. Ele não mandaria mais caminhar e eu teria de caminhar de qualquer jeito, escolhendo para onde e não tendo exactamente como regressar à fala, debater a decisão, mudar de destino.

Um só gesto de ombros, algo sem importância, precipitado ou nem muito satisfeito, era bom para que me respondesse. Seguia aliviado por haver pedido, informado, partilhado ou entregue a inteira responsabilidade. Depois, saía para as minhas ansiedades com metade dos medos e o dobro das esperanças. Ter o meu pai significa muito isso, viver com metade dos medos e o dobro das esperanças. Mas não haveria de ser injusto com a minha mãe. Ter mãe é ter um Deus pessoal e um escudo protector que nem o Dragon Ball consegue ter. Com ela, hoje, ainda me sentarei a refilar como a vida é uma trapalhada e como, afinal, gostamos tanto do pão quente e das uvas. Em volta disso, há sempre a nossa gloriosa alegria.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)