Rui Cardoso Martins

Sérios assuntos do trânsito

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

A juíza pediu desculpa a todos, já era uma da tarde e o julgamento estivera marcado para as 10.30 horas. Um acidente na auto-estrada atrasou-me a manhã toda, explicou. Por falar em estrada, o motorista de táxi entrou e começou o testemunho. Alto, atlético, Hélder, negro da Amadora.

– Só o vi uma vez, dessa vez, disse Hélder.

Mas ninguém vai esquecer essa vez. As discussões de trânsito podem fazer-se eternas nas meninges cinzentas do cérebro, nas vermelhas vísceras cá dentro. Do ridículo se passa à violência.

– Foi uma situação no Natal, não consigo precisar bem quando, era uma altura de muito trabalho. Fui deixar um cliente ao Intendente. Entro normalmente na minha faixa e não vi ninguém. Uma carrinha branca parou no meio. Perguntei qual era a necessidade de parar ali.

Entrava-se agora numa faixa estreita desta história, o relato do crime. O homem da carrinha branca vinha com a mulher.

– Começou a chamar-me nomes. Depois disse: “Preto, não estás aqui a fazer nada. Vai para a tua terra!”.

Hélder torceu-se na cadeira.

– Eu exaltei-me e… E perguntei-lhe se teve algum problema com a sua…

Mas porque falou baixo, apesar de manter a textura da voz, que lhe saía liberta, não anotei a frase completa de Hélder. Podia ter entendido mal. Tinha esperança de que ele a repetisse. Soara-me brutal, inesperadamente honesta.

– Ele então saiu do carro e gritou-me “sai já do carro!”, mas eu não saí. Ele a dizer para eu sair do carro, sair do carro e, como eu não saí, foi ao carro dele e pegou num objecto.

– Que objecto?

– Uma barra de ferro. E começou a partir-me o carro. Partiu-me o carro todo. Destruiu-me o pára-brisas. Eu, quando vi que aquilo não ia parar, saí do carro e fugi para o outro lado da estrada. E as pessoas a verem tudo. Depois veio a Polícia.

O advogado de defesa do homem da barra de ferro:

– O senhor em algum momento foi impedido de sair do carro?

– Não fui impedido mas, como ele tinha uma arma na mão, achei mais seguro ficar no carro. “Ai não sais?!”

– Mas ele impediu-o ou não?

– A impedição era a arma, respondeu o taxista Hélder, ele estava bastante alterado. Só quando vi que o carro estava destruído é que eu saí do carro, para o outro lado da estrada.

– O senhor em algum momento pegou numa pedra?

– Sim, eu corri para o outro lado da estrada e peguei numa pedra, para o caso de ele correr para cima de mim.

Crimes de coacção na forma tentada e de detenção de arma proibida. Era uma “bicha de boi”, barra flexível que o homem escondera, “é um objecto construído apenas como objecto de agressão, não tem qualquer outro uso.”

O problema tem que ser enquadrado e visto como um todo, disse o advogado nas alegações finais. Falou “num traumatismo tremendo” do seu cliente, que teve de ser assistido no hospital.

– Não podemos ter uma visão romântica do que se passou neste local! A testemunha é um rapaz jovem, corpulento. Houve uma tensão enorme entre todas as pessoas. E os actos já estão todos resolvidos, os danos pagos. Ele admitiu que tinha o objecto na mão, mas que se lhe soltou da mão e partiu o vidro.

Aproximava-se da frase de Hélder, a que desencadeara a destruição do carro:

– A testemunha foi também agressiva ao insultar a esposa que estava ali ao lado dele. Numa discussão de trânsito que não tinha importância nenhuma!

O homem da barra de ferro pediu para falar uma última vez:

– Maldita a hora em que eu bati na viatura, quando aquilo me saltou da mão! Eu não lhe bati nem o impedi de sair, mas ele, sim, largou-me uma pedra. Deu-me um encontrão contra o carro. Ainda de vez em quando ando aqui com uma coisa na vista… um traumatismo.

Fui atrás do taxista Hélder até ao corredor. Tivemos uma conversa educada. Preencheu as lacunas dos meus ouvidos:

– Eu perguntei-lhe se ele teve algum problema com um preto, se foi a mulher que o fez corno com algum preto…

– Bom, pelos vistos ouvi bem, disse eu.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)