O xadrez em Portugal e a série “Gambito de dama”

Tiago conheceu o xadrez depois de ver “Gambito de Dama”, a popular série da Netflix. Sara por um acaso. Luís através de uma aposta. Um iniciante, uma campeã e um professor. Em comum, a paixão pela modalidade e pelo drama televisivo que levou o jogo dos 64 quadrados para fora do mundo xadrezista.

“O xadrez nunca me chamou a atenção, era aborrecido.” Mas a ficção, por vezes, tem o poder de alterar a realidade. Tiago Vilar sabe jogar xadrez desde pequeno, ainda que nunca tenha tido entusiasmo pelo jogo de tabuleiro. Até agora. Aos 17 anos, o estudante de Guimarães “devorou” a recente sensação da Netflix “Gambito de Dama” em dois dias. Com a série, ganhou uma paixão.

Não foi o único. O drama inspirado no romance homónimo de Walter Tevis, que estreou em outubro do ano passado, chegou a 62 milhões de casas em apenas um mês. A série americana não era uma das principais apostas da plataforma de conteúdos cinematográficos, que foi apanhada de surpresa pelo fenómeno: “Gambito de Dama” entrou no top-10 de conteúdos mais vistos em 92 países.

A história de “Gambito de Dama” passa-se nos Estados Unidos da América
(Foto: DR)

Os principais sites da modalidade online bateram recordes de cliques. A nível mundial, segundo as tendências do Google, as pesquisas por “aprender a jogar xadrez” aumentaram 150% no mês posterior à estreia da série. Em Portugal, nos dois meses que se seguiram, a Federação Portuguesa de Xadrez esgotou todos os produtos disponíveis na loja digital.

Aberturas

A história da Netflix passa-se nos Estados Unidos da América e inicia com uma órfã de nove anos que descobre o xadrez com a ajuda do empregado de limpeza do orfanato onde vive. Na arrecadação da instituição, a criança revela ter um talento especial para o jogo. Tal como no caso da protagonista Beth, interpretada pela atriz Anya Taylor-Joy, todas as vidas no xadrez tiveram a sua abertura, o seu início de jogo.

Beth, interpretada por Anya Taylor-Joy, é a protagonista de “Gambito de Dama”, a série que fez com que milhares de pessoas se interessassem pelo xadrez
(Foto: DR)

Sara Soares conheceu o xadrez por um acaso. Ninguém na família pratica a modalidade. Aos seis anos, recebeu de um primo um livro, um tabuleiro e as peças. “Corria atrás da minha mãe para me pôr a aprender xadrez, fiquei apaixonada pelas peças”, relembra. Depois de tanta insistência, aos nove anos, entrou no Clube de Xadrez de Braga e federou-se. Numa rápida e surpreendente evolução, um ano depois, foi campeã nacional de sub-10. Passou a estar ligada à Escola de Xadrez do Porto e trilhou um caminho de sucesso que continua ainda hoje. Aos 14 anos, é campeã nacional absoluta – a melhor de todas as xadrezistas portuguesas, incluindo adultas.

Uma aposta também pode ser a porta de entrada no mundo do xadrez. Luís Soares, criador de conteúdos digitais, professor e formador, iniciou-se na modalidade por causa de uma brincadeira. Passados 15 anos, largou o emprego e dedicou-se profissionalmente ao jogo dos 64 quadrados.

Na adolescência, o professor de xadrez dos Açores considerava o jogo demasiado difícil e, por isso, “preferia as damas”. Um amigo apostou que, se conseguisse vencer Luís nas damas, este teria de aprender a jogar xadrez. Assim foi. Aprendidos os movimentos, foi derrotado pelo amigo quatro vezes seguidas com a conhecida abertura xadrezista Mate Pastor. Essa é também a jogada inicial utilizada pelo primeiro professor de Beth na série. Uma combinação simples, utilizada contra iniciantes, em que é possível vencer em apenas quatro lances. Luís, tal como Beth, ficou intrigado com a rapidez com que perdia. A paixão de ambos nasceu de uma derrota e de uma jogada simples, mas curiosa para os leigos do xadrez. Leigos que a série fez aproximarem-se do jogo. O número de jogadores de xadrez online aumentou nos últimos meses. “Chess.com”, plataforma digital dedicada à modalidade, está entre os 200 sites mais visitados do Mundo, tendo triplicado o número de utilizadores nos meses que se seguiram à estreia de “Gambito de Dama”.

Meio-jogo

O fenómeno da série aumentou o interesse pelo jogo, o que se fez sentir dentro e fora da rede xadrezista. Mário Oliveira, professor de matemática e xadrez do Colégio do Ave, em Guimarães, atribui à série o facto de ter conseguido manter praticamente o mesmo número de alunos no clube de xadrez, quando, devido à pandemia, esperava um cenário desanimador. Em 2019, tinha 42 atletas; neste momento, são 32. “Neste contexto é positivo”, diz o treinador de Tiago Vilar.

Tiago Vilar descobriu a paixão pelo xadrez na série da Netflix. Mário Oliveira, professor da modalidade no Colégio do Ave, recebeu-o de braços abertos
(Foto: Gonçalo Delgado/Global Imagens)

Para Luís Soares, o impacto da série foi visível na internet. Natural de São Miguel, nos Açores, este professor faz vídeos que publica no YouTube e no Twitch – plataforma de vídeos em direto. Com a estreia de “Gambito de Dama”, os números duplicaram: de menos de 500 para mais de mil visualizações em cada publicação. Entre os conteúdos partilhados, há um que confirma o êxito da produção da Netflix. Luís Soares decidiu gravar um vídeo em que joga contra a Inteligência Artificial do site “chess.com”. O mecanismo inteligente simula o estilo e o ranking de Beth na partida em que a personagem se torna campeã mundial diante do russo Borgov. O vídeo, contra todas as expectativas do açoriano, atingiu mais de dez mil visualizações. “As pessoas procuram efetivamente conteúdos relacionados com ‘Gambito de Dama’ e com a Beth.”

Apesar da visibilidade dada pela série à modalidade, são precisos ainda muitos lances para que o xadrez vença entre as massas. O ponto mais urgente, que também é tocado pela produção da Netflix, é o papel das mulheres numa modalidade ainda hoje dominada pelos homens. O presidente da Federação Portuguesa de Xadrez, Dominic Cross, acredita que “‘Gambito de Dama’ poderá combater o estigma de uma sociedade que olha para a modalidade como sendo um desporto masculino”, pois, garante, “dentro do mundo dos xadrezistas isso não acontece”.

Dominic Cross, presidente da Federação Portuguesa de Xadrez, acredita que “”Gambito de Dama” poderá combater o estigma de uma sociedade que olha para a modalidade como sendo um desporto masculino”
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Os dados nacionais mostram que, aos poucos, as mulheres estão a aproximar-se do jogo de tabuleiro, ainda que muito distantes da igualdade. De 2016 a 2019, antes de a pandemia travar a evolução, o xadrez federado em Portugal crescia cerca de 10% ao ano. Nesse aumento, as mulheres passaram, em três anos, de 500 para quase 750. Luís Soares reconhece que a mudança também se tem verificado nos seus seguidores, pois o número de visualizadores passou de maioritariamente masculino para perto do equilíbrio de géneros.

Atualmente, em Portugal, há 670 mulheres federadas, que representam apenas 18,4% do total de praticantes. A nível global, a Federação Internacional de Xadrez (FIDE) indica que apenas 16% dos jogadores que competem em eventos oficiais são mulheres. No top-100 da FIDE há apenas uma mulher, a chinesa Hou Yifan.

Sara Soares, 14 anos, é um caso de sucesso entre as xadrezistas. Em setembro de 2020, apenas cinco anos após iniciar a prática da modalidade, foi campeã nacional feminina absoluta. Na sua curta mas proveitosa carreira, já competiu em Espanha, na Polónia e na Roménia. A jovem atleta da Escola de Xadrez do Porto diz que a série televisiva destaca a realidade de “uma mulher no meio de homens”. Nos eventos internacionais em que participou, o domínio masculino “não era tão acentuado como em Portugal”. Sara nunca sentiu nenhum problema em defrontar homens. Assegura que o seu desempenho é idêntico, independentemente do adversário, mas aponta a falta de incentivos para o xadrez feminino como um dos aspetos que merecem ser revistos. A atual campeã nacional lamenta a menor competitividade existente entre as mulheres, o que faz com que o xadrez, jogo marcadamente competitivo, “não seja tão apelativo” para as jogadoras. Ao mesmo tempo, alerta para a dificuldade de conciliar o xadrez com a vida escolar ou profissional. “Há uma grande taxa de abandono do xadrez federado nas mulheres, o que não se verifica nos homens”, destaca Dominic Cross. O dirigente federativo afirma que é entre os 8 e os 12 anos que se encontram mais jogadoras, mas elas desistem pouco depois.

Sara Soares, 14 anos, é um caso de sucesso. Cinco anos após iniciar a prática de xadrez, foi campeã nacional absoluta
(Foto: Gonçalo Delgado/Global Imagens)

Desde que estreou “Gambito de Dama”, Mário Oliveira passou de uma para quatro alunas. Num universo de mais de três dezenas de atletas no colégio vimaranense, as raparigas são ainda uma significativa minoria. “Mas a série fez com que as meninas sintam que podem competir olhos nos olhos com os rapazes”, sublinha.

Finais

“Gambito de Dama” e a história apaixonada de Beth pelo jogo de tabuleiro impactaram a forma como a sociedade olha para o xadrez. Para Luís Soares, o futuro da modalidade passará pelo digital. “Há muitas provas online e os melhores jogadores, como o [japonês Hikaru] Nakamura e o [norueguês Magnus] Carlsen, estão a virar-se para a Internet.”. Já o professor de Guimarães, questionado sobre o futuro no digital, defende que “nada substitui o quadrado mágico”.

Com a incerteza da pandemia, a campeã nacional não tem planos. “Há muita desinformação e é importante o papel das escolas, mas há um longo caminho pela frente”, desabafa. Sara não pensa desistir. Bem pelo contrário. Até porque considera o xadrez “tão fascinante” que até tem dificuldade em revelar o que sente sempre que está em competição. O professor açoriano confirma: “No xadrez, o céu é o limite”. Enquanto o estudante vimaranense relata sentir “um verdadeiro espírito de sobrevivência durante as partidas”.

Tal como Beth, Tiago Vilar começou a gostar de xadrez por acaso. Qual será o próximo lance? “Não está fora de hipótese ser jogador profissional, nunca se sabe a que patamar podemos chegar.” No final da série, Beth derrota o maior adversário e sagra-se campeã mundial. Tiago continuará a treinar e a viver o sonho dentro do tabuleiro.