Jorge Manuel Lopes

O poeta da soul moderna


Opinião sobre música, de Jorge Manuel Lopes.

A vida de Bobby Womack (1944-2014) dava um filme acidentado. Nascido num meio pobre, numa família abundante e dedicada à música, ainda na infância começou a mostrar talento na voz e guitarra em formações gospel. Sob a alçada de Sam Cooke, Womack progrediu para a soul, pop e rock, e as suas composições gravadas por outros, incluindo The Rolling Stones (“It’s all over now”). No currículo tem também casamentos controversos, drogas, a morte de dois filhos, escândalos sexuais e parceiros musicais famosos, de Sly Stone a Aretha Franklin.

A carreira em nome próprio chegou no final da década de 1960 e é defensável afirmar que, no momento em que editou “The poet” e “The poet II”, em 1981 e 84, a chama criativa de Bobby Womack emitia os últimos grandes clarões. Em todo o caso, dois esplêndidos clarões, agora reeditados em conjunto. “The poet” é dominado por uma visão já firmemente dos anos 1980, com uma mistura ainda hoje fresca de r&b e funk sofisticados com uma voz e (discreta) guitarra que carregam soul, blues, gospel e a experiência de outras décadas. “Lay your lovin’ on me” é um portento de groove que podia ter sido escrita ontem, enquanto “If you think you’re lonely now” remete para os requintes orquestrais da década anterior, coro e harpa de Dorothy Ashby incluídos. Há teclados que ainda cheiram a plástico (elogio), as cordas do baixo golpeadas, vestígios de disco e até, no lançamento de “Stand up”, antevisões do eletro.

O estado de graça prolongar-se-ia por “The poet II”, que repete o essencial da equipa do disco de 81. O alinhamento arranca com três duetos com a imensa Patti LaBelle, duas baladas intensas e clássicas e uma visita à soul cinematográfica de 70 intitulada “Through the eyes of a child”, onde também se escuta a guitarra de George Benson (que deve a Bobby Womack um dos seus maiores êxitos, “Breezin”). “The poet II” é mais contido no abraço às estéticas e tecnologias da época e também nos momentos dançáveis, arrumados na segunda metade e coroados por “Tell me why”, que tem o balanço certo entre violinos disco e o funk lustroso e de mangas de blazer arregaçadas. A escrita, embora menos ousada, permanece soberba.