Valter Hugo Mãe

O livro de Coura


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

O livro que acaba abandona-me. Abruptamente me explica que não precisa mais de mim, sequer me tolera.

Há sempre um livro à espera de ser escrito, mesmo quando nos sintamos à deriva, perdidos, demorados para decidir o caminho, insatisfeitos ou agredidos com a vida tal qual ela é. Sou cada vez mais aflito com interrupções, adiamentos forçados, lugares de angústia quotidiana que me impedem de ser apenas alguém a quem um livro acontece. Pioro. Costumava ter uma gaveta mental que abria à vontade por dez minutos, dois ou cem dias. Uma gaveta perfeita que conservava límpido o ímpeto de todas as frases, todas as ideias. Hoje, julgo que o livro há no fundo tremendo do poço, onde desço em apneia por violência obstinada. No fundo de um abismo há essa maravilha da ideia por capturar, nossa língua incompleta que se revela um pouco mais. É, portanto, certa morte que alguma coisa impeça o exercício longo do mergulho. Porque esse impedimento adia o livro que já não será o mesmo livro, porque a descida a certo abismo é permitida num instante e, depois, para a eternidade, jamais. O livro não é mais o mesmo e o abismo a descer também não. Só nós nos mantemos e talvez tenhamos de mudar até que a evidência de outra maravilha nos admita.

Acabo o meu novo livro e estou em pequenos arrebiques da trama ou da linguagem. Detalhes que vão surgindo para criar a última paz, a possível. Regresso às paisagens, vejo os rebanhos, demoro por Corno de Bico e experimento aquela bizarra repetição do abandono. O livro que acaba abandona-me. Abruptamente me explica que não precisa mais de mim, sequer me tolera. Sou, agora, o pior que lhe pode acontecer, porque sou ainda todo-poderoso sobre seu resultado, mas qualquer investida poderá ser sobretudo descontrolo de ego e manifesto de ansiedade ou desespero. Neste momento, para glória ou fracasso, é imperioso aceitar que o livro parte autónomo, independente, obrigando-me a esse vazio cruel de não estar numa relação intensa com outro texto como este.

Por terminar o livro, mesmo que perdure nestas terras, despeço-me de cada coisa de Coura como se cada coisa se tornasse proibida. Coisas que me lembram a hora de ir embora, regressar a casa, lembram que não sou daqui, valeram por empréstimo e agora expulsam-me, como o livro.

Explicam-me que acaba a época do mirtilo. Obstinada presença na casa, acabar o mirtilo de Coura diz-me que aquilo de perfeito que me recebeu se mudou, no mínimo, para o próximo ano, e obedecer às estações é juízo. Tenho pena de não poder chamar a Faísca todas as manhãs, a égua. Julguei sempre que ela aprendeu a ver na minha voz alguma alegria que lhe quis dar.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)