Valter Hugo Mãe

O gesto limpo


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Estamos onde manda o amor. Somos todos capazes do impossível. A começar por desavergonhar Deus.

Lembro de me mandarem fazer cada coisa como se lavado por dentro, num banho do espírito que nunca envergonhasse a Deus. Não era para impedir a sua fúria, era para que não se desiludisse comigo. Eu pensava muito nisso. De sermos tão torpes que Deus entristecesse e sentisse necessidade de nos esconder no recôndito da Criação por vergonha.

A subir e descer pelas montanhas de Coura encontro gestos que são limpos. Quero dizer, que me soam da mesma ordem de preocupação, procurando poupar Deus à humilhação de nos haver criado. Subi ao monte de S. Silvestre a ver como as eólicas parecem navegar o Mundo em busca do Sol. Tanto chão dali se estende mais me convenço de que caminhar é obrigação. E eu caminho. Encontrei ali um velho que me jurou andar aquilo tudo a pé. Não era pastor, a menos que o vento fosse rebanho. Era sozinho e estava inteiro na paisagem, sem precisar de mais nada.

Eu sou um ruído em certos lugares de Coura. Apareço onde não me esperam. Estes altos dos montes devem achar que anda por aqui um bizarro que lhes vai medir as vistas, o silêncio, o agreste da vegetação, o bulício por identificar de algum animal selvagem que nunca cheguei a ver qual. Só vejo pássaros, e mais os ouço do que vejo. Expliquei ao velho que sou de fora e descanso do meu trabalho a pasmar nas paisagens. O homem não me estranhou por isso. Mas considerou que usar carro era não entender nada do verdadeiro espanto.

O dia de hoje amanheceu com chuva, foi clareando casmurro, sobrou o frio severo a começar o verão a contragosto. Levei apenas um casaco fresco que me ficava igual ao orvalho ainda nas ervas. E o velho agasalhado sorriu. Para me ensinar, disse que, da próxima vez, eu devia ir de boleia a pé com alguém que soubesse como viver nos montes e suspeitar do frio. Quando me sentei, ele sempre sorrindo como a gozar comigo, tive a impressão clara de que ele estava em seu banho interior, essa conquista raríssima de se encontrar modo de pensar limpo para chegar ao gesto limpo também. O gesto mais limpo pode ser apenas contemplar, esperar por nada.

Quando desci, perguntei-lhe se queria descer também de carro, nem que apenas para saber que esses bichos de metal podem ser amigos. Respondeu que não. Quando descesse não levaria mais do que uns minutos num carreiro por onde se segue sem peso. É só mirar os pés, que para baixo até a barriga ajuda.

Almocei a matutar no velho e agora estou convencido de que o sonhei como se sonham de verdade os fantasmas. Nas terras de Coura, já alertei, muito se deixa inexplicado dentro de sua fulgurante maravilha. Somos invariavelmente uma fantasmagoria no cimo dos montes descobertos, nos seus pontos mais altos, sem ninguém, onde os dias de neblina pousam o céu.

Deito mão do livro de Marlene Castro, em torno da memória de Josefina Antónia Vaz, e leio: “Atravessámos o céu e o inferno para vos dizer que, onde manda o amor, não há outro senhor”. Estamos onde manda o amor. Somos todos capazes do impossível. A começar por desavergonhar Deus.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)