O doutor, o embaixador e a osga
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Um caso de agressão brutal em prédio de condomínio num bairro com problemas sociais? Sim, mas não os habituais. Um ex-embaixador com 70 anos bateu num médico reformado com mais de 90, ou melhor, empurrou-o, partiu-lhe uma costela, escoriou-lhe a mão, quase lhe fracturou cabeça e cóccix, chamou-lhe aldrabão e cobarde, e agora estava no banco dos réus, estupefacto com a sua situação de arguido. Agressão agravada e injúria.
– Sou diplomata de carreira aposentado. Ministro plenipotenciário, que é logo a seguir a embaixador.
Magro, de pouco diplomáticos olhos inquietos, ouviu com risinho nervoso [expressão que não estreara nesta crónica, creio] a juíza a ler-lhe a acusação.
– Não é verdade. Há uma parte de verdades, mas é só 5,95% é mentira!
O embaixador, ou melhor, o ministro plenipotenciário, cargo logo a seguir a embaixador, é licenciado em Economia, é daquelas pessoas que falam por percentagens.
– É verdade que vinha na minha viatura. E saio para ir ver a minha caixa de correio, como faço sempre. E o meu carro de maneira nenhuma pode obstruir a passagem de alguém! É um carro pequeno, um Fiat 500. Nesses… um minuto deixei o carro do lado de fora.
A juíza queria que concretizasse os 5% verdadeiros e lia-lhe:
– “Desferindo-lhe empurrão de tal modo modo que bateu na parede. Após, o senhor arguido desferiu-lhe vários pontapés nas pernas”…
– Não aconteceu nada disso!
– “Causando-lhe fortes dores e escoriações na mão”…
– Eu vi o senhor caído no chão com o cóccix… sentado, o que não é nada agradável. Ele quis-se desviar da minha frente, guinou para a direita e apoiou-se num dos contentores com rodas. Um dos contentores desviou-se. Ele caiu e ficou atrás de mim. Eu com certeza não o podia ter empurrado!
Foi então, acrescentou o embaixador, aliás ministro plenipotenciário, que é logo a seguir a embaixador, que desceu os 20 metros da rampa e foi estacionar no fundo da garagem.
– Dois ou três minutos depois, quando voltei, ele já não estava lá, não sabia se tinha ido para casa se para o hospital. Bater com o cóccix já me aconteceu, não é nada agradável.
Sobre os insultos, ainda mais vago:
– Nesse contexto não disse, mas é possível que em papéis anteriores, ao longo dos anos, lhe tenha chamado aldrabão, porque ele é um aldrabão!
Porque já lhe tinha dito, enquanto administrador: “O doutor tem de cumprir o regulamento que o doutor aprovou!”. O pagamento dos terraços. Os prédios ricos também têm problemas com terraços.
– O senhor impediu-o de passar, não é?, perguntou a advogada.
– Sim, não lhe fui dizer “passe”!, admitiu o diplomata.
Entrou a vítima, baixinho, 90 anos e bengala, uma perna ligeiramente maior do que a outra, a voz macia.
– Sou médico pediatra, reformado.
Que isto vinha numa sucessão de tentativas de agressão. Que durante 45 anos foram amigos, mas zangaram-se. Nos últimos tempos, até saía pela rampa da garagem com a mulher, evitando encontros. Mas um carro tapava o sensor do portão (aberto), e o vizinho saiu a gritar-lhe aldrabão e mentiroso.
– Agarrou-lhe o pescoço?, perguntou a procuradora.
– Não me agarrou o pescoço. Empurrou-me pelo pescoço. Eu não caí. Fui empurrado. Bati no chão. Acho que a pessoa que me fez isto não sabia que eu ia bater com a cabeça na parede. Parti uma costela. Fiquei deitado a gemer.
E de repente, como em tantos casos, entrámos na antropologia zoológica, tão útil à linguagem humana.
– Passou pela minha mulher como por vinha vindimada.
[Faltou aqui a palavra cão, parece].
– Os caixotes estão fixos, só têm duas rodas, não deslizam.
[Aqui o embaixador riu-se sardonicamente, também advérbio novo nesta crónica, mas a melhor palavra que encontrei].
– O senhor tentou de alguma maneira desviar-se?
– Não tive oportunidade, fui apanhado de surpresa.
– Não lhe deu pontapés?
– Deu-me um toque nas pernas, como quem toca num animal morto. Para mim, é como quem pega numa osga e vê se ela está morta.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)