Valter Hugo Mãe

Miosótis


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Há uma infância permanente no deleite profundo. Uma infância inesgotável para quando nos deparamos com uma gentileza franca, uma beleza desarmante, a coisa pura.

Os passadiços que agora pontuam o melhor dos passeios pelo Norte do país são como certos caminhos emprestados, lugares de andar que pretendem criar uma relação algo temporária com a ideia de aparecermos por ali, não ferindo a paisagem, apenas permitindo a visita, prometendo apagar nossa presença depois, deixar substancialmente intacta a Natureza. Nenhum trilho se apresenta como mais delicado empréstimo da Natureza quanto o de S. Martinho de Coura, no qual chegamos a recantos do rio onde não havia muito sinal de alguma pessoa se ter erguido em pé. Estamos num certo segredo enfim revelado. Uma gema que se expõe na sua profunda delicadeza a fazer crer que, afinal, a humanidade pode não ser presença bruta no esplendor da Natureza.

É um percurso curto mas limpo e gratificante. Estamos afundados na ladeira, bem abaixo do nível da estrada, e o sulco na montanha cria a impressão de nos fecharmos onde apenas a água era caminho. De todo o modo, as quedas oferecem o ruído e impediriam a navegação, este é, portanto, um lugar virgem, existiu pela eternidade praticamente sem ninguém, abre agora sua pureza como se chegasse directamente do início do Mundo.

Eu e a Isabel dissemos a mesma oração, que era lindo o reflexo, lindo o arvoredo, lindo o silêncio e como o silêncio interrompia para o marulhar da corrente, lindo como o sol chegava lá baixo, lindos os fetos e as flores silvestres. Que lindas umas mínimas flores silvestres que se punham às pouquinhas na beira. Muito tímidas, como apenas insectos floridos presos pelo pé. Que serão. Tão inteiras e tão diminutas. O que raio serão estas flores poupadinhas e lindas.

Há uma infância permanente no deleite profundo. Uma infância inesgotável para quando nos deparamos com uma gentileza franca, uma beleza desarmante, a coisa pura. Somos tão obrigados à poluição que nos vemos meninos diante do que é sem mais nada, vulnerável e sincero. Estivemos assim. Eu e a Isabel, crianças a ver tão de pertinho o rio.

Anda por aqui um verão aos fanicos. Tanto vem um sol que nos ofusca quanto se instala o temporal, chuva dias inteiros, um vento frio para doer ossos e mandar para a cama. A gente já nem sabe se isto é avanço ou recuo. Tanto nos parece Julho quanto se põe Outubro. Saíamos do trilho em Julho, seguimos para casa e, nos escassos 20 minutos de viagem, ficou Outubro. Aquela humidade triste que nos lembra o tempo de ir à escola, comprar galochas para proteger os pés das poças no chão e fazer o tpc. Este ano, já me convenci, vai de alegrias estreitinhas conforme a hora. Se não gulodamos a alma no momento certo, depois já só nas mantas a ver como abana o arvoredo ao pé da janela, como parece escutar feras a caçar quase nada no campo.

Por outro lado, também gostaria de ir de guarda-chuva junto do rio, a espiar como o rio se molha. Como chove ali e o arrepio nos solicita agasalho e a companhia. A ver se a Isabel se anima a vir outra vez.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)