Trabalhar a partir de qualquer parte do Mundo ou ir ao escritório sem controlo de horários. Ter a sexta à tarde livre ou alterar a semana para quatro dias a bulir e três a descansar. O mercado está a borbulhar em nome de mais equilíbrio com a vida pessoal. E as transformações já se vivem em Portugal. Um Livro Verde e uma reforma na lei laboral dão sinais de futuro.
Ainda não era uma realidade comum em Portugal, mas em janeiro de 2004, quando a BMW se implantou no nosso país, já os trabalhadores tinham a sexta-feira à tarde livre. Pioneira em solo lusitano, a marca alemã trazia as boas práticas do mercado mundial para o Lagoas Park, um parque de escritórios em Oeiras. “Na altura, havia muito poucas empresas a fazê-lo”, acentua Cristina Carvalho, diretora de Recursos Humanos.
Hoje, a medida abrange os 110 colaboradores, que todos os dias trabalham meia hora a mais para compensar. E tornou-se no grande atrativo da empresa. “É a principal vantagem para retermos profissionais. No processo de recrutamento, posso falar no seguro de saúde, plano de pensão, fruta, massagens, mas quando falo da sexta-feira à tarde há logo um abrir de olhos, e um ‘uau’.” E os benefícios parecem comprovados. “Em termos de produtividade não há razões de queixa. E o feedback interno não pode ser melhor. Não há contras.” Há colaboradores que aproveitam a tarde extra para tratar de burocracias pessoais nos serviços públicos, quem vá para a praia, quem vá buscar mais cedo os filhos à creche. É o equilíbrio vida profissional-vida pessoal a acontecer.
Mas não há quem acabe por trabalhar à sexta à tarde em épocas de grande volume de trabalho? “Quando acontece, é compensado noutro dia. Somos muito exigentes com isso. O overtime não é bem-vindo na BMW.” E a flexibilidade também entra numa multinacional onde os trabalhadores podem entrar entre as 7.30 e as 9.30 horas e sair entre 16.30 e as 18 horas. É uma opção. A pandemia ainda ajudou mais à mudança. Agora, há três dias na empresa e dois de teletrabalho. Funciona com reserva de lugares no escritório e no estacionamento. “Ainda estamos a aprender. Mas já passou quase um mês e está a correr bem.”
Semana de quatro dias?
A covid-19 deu um empurrão, é certo, mas já antes o mundo do trabalho dava sinais de mudança. Trabalhar quatro dias por semana, a partir de qualquer parte do Mundo, horários flexíveis, ter a sexta-feira à tarde livre, os novos modelos de trabalho não servem a tudo e a todos. Ainda assim, muitas empresas começam a dar passos firmes. Com a reforma da lei laboral em cima da mesa em Portugal, o burburinho aumenta de volume.
E põem-se os olhos lá fora. A semana dos quatro dias tem dado que falar. Japão, Espanha, Islândia e Nova Zelândia já testaram com sucesso. Reduzir o período laboral para entre 32 e 35 horas semanais tem sido uma experiência tanto levada a cabo por empresas, como a Microsoft no Japão, como por países, caso da Islândia, que testou o modelo na capital, entre 2015 e 2019. E não só não houve quebra de produtividade como ela aumentou. É um sintoma de trabalhadores motivados a tomar as rédeas ao famoso work-life balance.
Em Portugal, o economista João Cerejeira tem dúvidas. “O grande problema é a baixa produtividade das empresas portuguesas. Podemos passar para quatro dias com penalização salarial? Talvez. Isso é do interesse do trabalhador? Talvez não seja. E sem o ajuste salarial, será sempre um número reduzido de empresas a conseguir fazê-lo, aquelas em que o tempo de trabalho não é relevante, o que interessa é a realização de uma tarefa.” Mas, se pensarmos num regime de reorganização do tempo de trabalho, aumentando as horas diárias de segunda a quinta para se conseguir libertar a sexta-feira, “isso é perfeitamente viável”. “Estender o tempo de lazer pode melhorar a qualidade de vida. Mas somar uma ou duas horas diárias também pode ser penoso em algumas áreas. A exaustão e o cansaço não levariam a menos produtividade? Tem que ser testado.”
A lei portuguesa já prevê a adaptabilidade dos períodos normais de trabalho, que é como quem diz a flexibilidade de horários. E prevê também o regime de horário concentrado – que permite concentrar o horário no máximo até mais quatro horas diárias para lá das oito preconizadas -, uma figura ainda pouco utilizada.
Trabalhar em qualquer ponto do Globo
Certo é que estamos a assistir a “um conjunto de transformações”, que, segundo Cerejeira, não são súbitas nem acontecem do dia para a noite. E só são possíveis em alguns setores. “Por exemplo, o teletrabalho em 2020 abrangeu no máximo 20% dos trabalhadores. Veio para ficar, mas estamos sempre a falar de um número reduzido.” A flexibilidade nos horários, que já existe em certas profissões, também não serve todas as medidas. “Funções de atendimento ao público exigem um horário fixo. Escolas, hospitais, indústrias inseridas em grandes cadeias produtivas estão organizadas de forma a não haver paragens no processo.” Os modelos alternativos não se vão generalizar, ganham força sobretudo em profissões ligadas às tecnologias de informação. Os nómadas digitais são o exemplo claro.
A 7Graus, tecnológica do Porto e um dos maiores produtores de conteúdos em Portugal e na América Latina, tem cerca de 70 colaboradores a trabalhar remotamente a partir de Espanha, México, Brasil, Argentina, EUA e Chile. “Como produzimos conteúdos em várias línguas, vamos à procura de especialistas de um determinado conteúdo que sejam nativos nessa língua. A localização geográfica hoje já não é uma limitação”, explica Rui Marques, CEO da 7Graus. Com fusos horários diferentes, “o único handicap acontece quando é preciso trabalho síncrono, uma videochamada por exemplo, mas há pouca necessidade disso, as pessoas que estão noutros países sabem que conteúdos têm que escrever e gerem o seu trabalho de forma independente.”
A pandemia veio acelerar a mudança para os trabalhadores portugueses. O trabalho remoto na 7Graus passou a ser opção também aqui. “Temos pessoas que optaram por voltar às suas terras de origem, não fazia sentido viverem no Porto, longe da família, e com custos de habitação mais elevados.” Nesta fase, a empresa até já contratou uma pessoa na Madeira. E o modelo facilitou muitas outras coisas. “Tivemos o caso de um colega que tem família no Reino Unido, queria lá ir, como tinha de fazer quarentena, ficou a trabalhar nesse período em que esteve fechado e as férias dele começaram quando a quarentena acabou.” Mesmo com mais contratações, aumentar as instalações deixou de ser uma questão, como era antes da covid. “Já não temos lugar para toda a gente nos escritórios. Então, agora, as pessoas se quiserem vir trabalhar têm que reservar um posto de trabalho.”
E há vantagens? “A maior são trabalhadores mais satisfeitos e isso reflete-se no trabalho. Além de que há pessoas que são mais produtivas em casa. Quando estamos num escritório com muita gente, pode ser mais difícil estar concentrado.”
Livro Verde abre a porta ao futuro
Teresa Coelho Moreira, especialista em direito do trabalho, foi uma das coordenadoras científicas do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, um documento encomendado pelo Governo e apresentado neste ano. Tem linhas orientadoras, sugestões de regulação de novas formas de trabalho no país. Pode parecer, mas a pandemia não foi o gatilho. Começou a ser preparado antes disso, um sinal de que já antes havia consciência das transformações. “O livro aborda o direito à desconexão do trabalhador em teletrabalho – e já há propostas legislativas nesse sentido, a questão da flexibilidade, dos nómadas digitais, a conciliação entre a vida pessoal e profissional, o incentivo à partilha das licenças parentais”, enfatiza a professora da Escola de Direito da Universidade do Minho.
Na União Europeia, só existiu um Livro Verde, na Alemanha, que depois se concretizou em alterações legislativas. Por cá, os avanços, defende a especialista, vão depender da negociação coletiva, de envolver os parceiros sociais, mais até do que da lei. E o livro deixa pistas claras. Desde criar uma rede nacional de espaços de coworking aos nómadas digitais. “Porque não se sabe muito bem que sistema aplicar a estes trabalhadores, a carga fiscal varia de país para país. E, para atraí-los para Portugal, é preciso criar um enquadramento fiscal e sistemas de acesso à proteção social, aos serviços de saúde.”
A eventual redução do período normal de trabalho também entra nessas guidelines. “É algo que está em cima da mesa. Os testes no estrangeiro tiveram ganhos de produtividade. Mas em Portugal teria que acontecer sem a perda de rendimentos. É isso que propomos que seja ponderado.” A sugestão não prevê a concentração do horário já preconizada na lei, mas a redução efetiva das horas de trabalho em certos setores. “Pode ponderar-se as seis horas diárias. Ou manter-se as oito e ganhar um dia extra, desde que haja ganhos de produtividade.” As empresas portuguesas estão preparadas para isso? “Sabemos perfeitamente qual é a realidade empresarial em Portugal. Depende de caso para caso. Por isso é que tem que se ponderar com os parceiros sociais. Sobretudo no setor tecnológico, há ganhos e não é irrealista.”
O fenómeno da sexta à tarde
Tanto não é irrealista que muitas organizações já tiram meio dia ao horário. À semelhança da BMW, a multinacional JLL, que faz gestão imobiliária, liberta os 335 trabalhadores em Portugal a partir das 14.30 horas de sexta-feira. Sem penalização salarial. Não foi sempre assim. “Este regime surgiu há mais de dez anos por força da necessidade. Na altura, vivíamos uma grande crise no país, que afetou o setor imobiliário de forma significativa”, pormenoriza Alice Matos, diretora de Recursos Humanos da JLL. A empresa teve que fazer redução do horário e consequente corte salarial. A retoma económica permitiu-lhes repor os ordenados, mas o impacto que a tarde de sexta tinha tido “na felicidade, satisfação e produtividade das pessoas” foi tanto que a JLL decidiu manter essa medida.
Em agosto, a empresa também permite aos funcionários entrar mais cedo, fazer só meia hora de almoço e sair às 16 horas. Vantagens? Muitas. “A partir do momento em que as pessoas estão motivadas, o nível de produtividade e entrega é notório. Importa-nos muito mais a concretização de um objetivo do que se a pessoa trabalhou oito horas.” E o maior equilíbrio com a vida pessoal só traz ganhos. “Marcamos para as sextas consultas médicas, há quem tire cursos, aproveite o tempo para um hobby, tenha a oportunidade de ir buscar os filhos à escola, como é o meu caso, coisa que antes nunca conseguia fazer.”
Segundo Artur Queirós, especialista em psicologia do trabalho e das organizações, a mudança vai acontecer cada vez mais. “Tem a ver com a forma como o trabalhador hoje se coloca no Mundo, com uma preocupação maior com o seu bem-estar e qualidade de vida.” Por isso mesmo, o sócio-gerente da Alento, empresa na área da gestão de carreiras, sabe que foram as pessoas a motivar a mudança. “Esta predisposição das empresas para o tão falado work-life balance acontece por um motivo simples. A fuga de talentos começou a ser muito grande. Isso é que fez com que ficassem tão alerta, não é porque de repente se preocupam muito com o bem-estar dos trabalhadores.” E a maior rotatividade, sobretudo nas tecnológicas, dita medidas que procurem segurar a mão de obra. “A Alento nunca teve tantos clientes no serviço de gestão pessoal de carreira como na pandemia. E na maioria dos casos são pessoas empregadas, ativas, que começaram a refletir sobre a sua vida.”
As empresas até podem ter sido empurradas por um mercado a borbulhar, mas Artur agradece a mudança. “As pessoas não produzem o mesmo às mesmas horas. Há quem trabalhe melhor de manhã, à tarde, à noite. E a flexibilidade e o trabalho remoto permitem isso.” Já a opção de concentrar o horário para ganhar um dia extra é mais controversa. “Para as empresas há um problema óbvio, a maioria do mercado continua a trabalhar de segunda a sexta. E será que todos os trabalhadores gostam da ideia? Parte-se do princípio que sim, mas não necessariamente. Mesmo que o Governo o queira, a mudança só vai acontecer se as pessoas e as empresas quiserem.” No campo da futurologia, provavelmente serão as gigantes a influenciar as pequenas nesta matéria. E o mercado estará cá para ver.