Valter Hugo Mãe

Enxaquecas


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Já me aconteceu em viagens de avião atravessando oceanos, em programas de televisão, entrevistas, festas de aniversário, encontros com amigos que não via há anos.

Por vezes, escrevo sobre as minhas enxaquecas frequentes, o modo como me incapacitam e me obrigam a lunaridades típicas dos quadros depressivos. Escrevo sobre essas exasperantes dores de cabeça como se explicasse ao Mundo o que parece não ser inteligível pela multidão que se compadece apenas com doenças visíveis a olha nu, fracturas no corpo, sangue a jorrar, cores púrpuras. Sempre que me escuso, explicando que estou com uma enxaqueca, no limite, até hospitalizado, a resposta que recebo é a de que estou a ser fresco, devia fazer um esforço por respeito a quem me espera para algum compromisso.

No meu caso, o que sinto é uma temperatura descontrolada na cabeça, uma impressão de que o cérebro dilata e se esmaga de encontro ao crânio. As dores fazem-se insuportáveis e o corpo propende para desligar. Dizem-me os médicos que, se não houvesse desmaio, haveria de colapsar em absoluto, inclusive com danos cognitivos permanentes. Assim, desmaiar pode ser fundamental, por mais que seja também assustador, o que nos avisa para não demorar na rua, jamais conduzir assim e buscar à pressa um lugar para deitar, sem ninguém, sem diálogo. Todos os ruídos se tornam insuportáveis, as luzes e, sobretudo, os perfumes, a porcaria mais violenta que existe para quem sofre de enxaquecas, essa coisa horrivelmente química que são os odores fabricados. A única coisa que podemos fazer é parar o corpo, deitar, não dizer nada, não abrir mais os olhos, respirar o melhor possível para moderar as náuseas, procurar descer os níveis de ansiedade. Neste processo, o que está em causa é a pura sobrevivência. A dor é tão intensa que em tudo pode ser o começo da morte.

Passei anos com dores de cabeça contínuas e melhorei um bocado na paralisação da pandemia. O que significa que isto me acontece ainda quase todas as semanas. Eu já fiz de tudo com o medo de simplesmente não poder mais e cair definitivamente no chão. Já me aconteceu em viagens de avião atravessando oceanos, em programas de televisão, entrevistas, festas de aniversário, encontros com amigos que não via há anos. Por viver com a constante ameaça da dor de cabeça extrema, eu já precisei de atender à vida com o pânico à espreita, acabando por me socorrer em absoluto, chegando a algum hospital em urgência, sentindo-me miserável. Quando não posso fugir a tempo, o mais certo é tombar depois de verdade como para morrer. Posso ficar à mercê de quem estiver junto, à mercê de desconhecidos, ou simplesmente mudar de dia sem mais nada. À espera que alguma coisa se componha e eu me consiga mexer sozinho para me socorrer.

Falhei há dias a um evento que me importava muito, como falho cada vez mais, e a quem disse ter estado com uma enxaqueca me respondeu quase invariavelmente com alguma piada ou pequeno insulto. De facto, isto que me destrói por completo a vida é, para a multidão, uma espécie de coisa esperta que uso para não sair. Para a multidão, haverei de estar a adorar retorcer-me por horas numa febre descontrolada sem poder erguer-me nos pés, sem ter condições para comer ou dormir. Sem articular direito, sem saber se regressarei intacto ou se, por fim, vou sepultando o cérebro aos poucos, para ser outra pessoa que não reconheça mais.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)