Valter Hugo Mãe

Confraria dos Ovos Moles de Aveiro


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Estamos urgentes. Precisamos de levar o doce e o sol ao estômago. Senti-lo radial ao centro de nós.

No próximo dia 26 faz anos a Confraria dos Ovos Moles de Aveiro, da qual sou um feliz confrade de honra. Passar pela região de Aveiro e alambazar-me nas confeitarias onde se vendem os ovos certificados tem sido uma perdição amorosa à qual me entrego com afinco. E gosto sempre de pensar que haverei de arranjar modo de morrer de amor. Outras mortes são descuido na nossa dedicação, uma espécie de desuso do epicentro cardíaco, um verdadeiro desperdício.

A Confraria completa 12 anos de uma juventude entusiasmada e importante. A breve idade foi já suficiente para erguer um monumento aos ovos-moles, da autoria do escultor Albano Martins, que prepondera no Jardim da Fonte Nova, ou para criar com a Vista Alegre e o artista plástico Gil Maia uma nova barrica. De facto, a acção da Confraria tem passado muito por prestigiar o primeiro doce conventual a ser certificado na Europa através da arte, sublinhando a sua imagem distinta, tão requintada quanto simples, depurada, a lembrar a alvura do sal da região envolvendo a areia iluminada ou um pedaço da própria luminária celeste.

Por honra, estou obrigado a alardear os ovos-moles. De facto, no instante em que me fiz confrade, eu como todos os demais, formalizei o acto declarando: “Juro levar os Ovos-Moles de Aveiro ao Mundo inteiro. Isto, se não os comer primeiro!”. Digamos que, até por prudência, vale mais que os comamos de imediato e espalhemos a palavra como quem sopra a flauta mágica. Não é nada difícil entender a maravilha de se viajar até Aveiro, e mais fácil se torna quando as barricas chegam frescas a cada dia, grávidas desse mel do ovo. Imagino que ao domingo de hoje apetecerá a muitos ir ver como vai a ria e como flutuam ainda os moliceiros. Como perduram as casas do tempo da Arte Nova e onde se fazem as filas mais educadas para comprar os preciosos doces. Todos os dias são perfeitos para ir a Aveiro.

Há uma página na internet para seguir o trabalho da Confraria. Convido a que acedam. Sei bem que ver o luxo das confeitarias num ecrã é como adiar o abraço a quem amamos. Mas ver quem amamos já é o começo de um abraço. A página da Confraria será o começo do beijo, esse que morde e come, à força de um exuberante amor. Já é para quem, como dizia acima, não aceita nada menos do que o amor para causa de todas as coisas, destino de todas as coisas.

A pandemia reinventa tudo. Fartos de esperar, redobramos sentidos e saudades. Julgo que a intensificação da acção da Confraria hoje se deve também a esta percepção: urgimos agora. Estamos urgentes. Precisamos de levar o doce e o sol ao estômago. Senti-lo radial ao centro de nós. E acreditar que a vida vai já voltar a ser um exercício de segura liberdade. Esperança. À solta. Estarmos à solta outra vez.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)