Valter Hugo Mãe

Comer Coura


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Na frutaria podemos perguntar o que é de Coura e muita coisa é. Ficamos com a impressão de comer a mesma limpeza que vemos na paisagem, uma certa beleza que pode ser contemplada pelo estômago.

Atazanei a paciência da minha comadre por anos, depois de um risoto desastroso que inventou de nos cozinhar. Por mais que protestasse para me fazer crer que é uma boa cozinheira, a desgraça do risoto não parecia permitir redenção. Agora, não sei se é por estar metida na casa nova que parece uma fábrica coberta de metais, se é por ter filhos, viver no campo, ter um fogão eléctrico ou usar sal cor-de-rosa, o seu caril de legumes sai impecável e a salada com alho-francês a caramelizar não tem explicação. Eu nem conhecia salada de alho-francês melado ao ponto de ficar doce, com cogumelos e coentros em cima, juro que não tenho descoberto nada melhor para engordar com alegria.

Tem graça comer aquilo que os campos adiante germinam. Os cogumelos, a batata ou os mirtilos. Na frutaria podemos perguntar o que é de Coura e muita coisa é. Ficamos com a impressão de comer a mesma limpeza que vemos na paisagem, uma certa beleza que pode ser contemplada pelo estômago.

Agora tenho todas as intolerâncias. Não posso comer cebola nem pimentos, que me deixam o estômago a arder por dias, não posso beber qualquer tipo de vinho porque me faz imediatamente enxaquecas, estou absurdamente intolerante à lactose, que me dá vertigens, tonturas horrendas, não suporto alimentos ácidos, nem limão nem ananás. As minhas refeições são quase sempre as mesmas. Agarro-me às uvas e aos mirtilos maduros, ao pão integral e ao abençoado arroz branco que adoro. Qualquer caril de cogumelos me conquista.

Vou ao Restaurante Miquelina e a dona Ana já sabe que protesto contra tudo. Não quero maruca nem porco preto nem quero trutas. E também não quero hortaliças cozidas, que me parecem alimentos mortos por afogamento. São horríveis. Eu gosto de comida bonita que ainda fique como um jardim quando no prato. Uma comida limpinha, com tudo separadinho sem misturas, sem salsa em cima, porque a mania da salsa tira-me do sério. Faz-me lembrar bolinhos de bacalhau ou pataniscas e eu odeio.

A dona Ana arranja-me as melhores omeletas de cogumelos com arroz branco e agora muita gente me vem perguntar se estou na esplanada a contar coxos. Escrevi que vejo muita gente a coxear em Coura, não disse mal de ninguém. Reparei num detalhe que me saltou à vista. Continuo a pensar que é bizarro. Mais gente passa a coxear e até o mais dócil cão que aqui vejo coxeia.

Acabaram as benditas obras diante da esplanada. Agora, há ali uma escadaria toda importantona e um candeeiro barroco com ar de finesse. Os Galandum Galandaina deram um belo concerto na noite de abertura da obra. Fomos todos ver com ar de roupa nova. Ver a vila mais bonita deixa-nos mais bonitos. Eu, ao menos, estava mesmo sexy. Tenho a certeza de que toda a gente reparou.

Começa Agosto com chuva. Alguém me dizia que o clima do Minho não oferece confiança. Nunca sabemos se acordamos no verão ou no inverno. Da minha varanda vejo a Faísca, a égua que vive na leira do lado. Chamo por ela. Ela já não barafusta. Começa a habituar-se à minha presença. Fico feliz que se habitue e me considere um bocadinho amigo.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)