As bonecas são, na sua maioria, brancas e magras, louras e morenas, sem aparelho nos dentes. Há crianças que não se sentem representadas nos objetos de brincar. O mercado dá o que a sociedade quer, é um reflexo de vontades, e é um assunto bastante sério.
A primeira boneca negra que Fernanda Varela Gameiro teve foi aos 40 anos e feita por si, pelas suas mãos. Filha de pai cabo-verdiano, mãe são-tomense, Fernanda nasceu em Portugal, é técnica superior de diagnóstico e terapêutica, licenciada em Cardiopneumologia. Em 2017, criou a marca NandDolls Handmade With Love por várias razões e com determinados objetivos. Faz bonecos de pano com diversos tons de pele e com cabeleiras afro, vestidos com tecidos africanos de padrões vibrantes. “Porque a diversidade existe, e a representatividade importa” é a frase que resume o seu projeto, que condensa o que pensa e o que sente.
A falta de representatividade negra nos brinquedos que, no seu caso, não é apenas uma perceção, mas sim uma experiência, e a pouca oferta neste universo foram os principais motores do seu negócio artesanal – depois de aulas de costura criativa e um workshop para aprender a fazer bonecas. “Quando era pequena, não queria bonecas, não me diziam nada. Não havia bonecas como eu e podia sentir-me um pouco insegura. As referências eram todas brancas”, conta. Por isso, defende que a representatividade nos brinquedos durante a infância, processo crucial no crescimento, é importante para a aceitação e elevação da autoestima. “É essencial uma criança crescer com essas referências e sentir-se representada nos brinquedos, nos filmes, nos desenhos animados”, comenta.
Com as suas criações, Fernanda Varela Gameiro abre o leque de possibilidades, ajuda mães de crianças negras a encontrarem bonecos que “promovem a autoestima e a beleza negra”, por uma questão de representatividade, por uma questão de identidade. Por uma questão de autoestima também. “Toda a nossa história justifica que haja alguma diversidade e algumas opções, até para que as crianças aprendam a lidar com as diferenças”, sublinha. Se não há diversidade, não há empatia por aquilo que não faz parte do universo dos mais pequenos. E o preconceito instala-se desde cedo e logo nos objetos de brincar.
Fernanda é mãe, tem dois filhos, o marido é canadiano. “Somos uma família multirracial, os meus filhos têm orgulho das suas raízes, dos seus avós, não têm de sentir vergonha e não deixam que ninguém os trate de maneira diferente porque a mãe é negra.
Os brinquedos, de uma forma geral, e os bonecos, de uma maneira particular, ainda são muito estereotipados e, na sua maioria, não refletem a diversidade da população. Rute Agulhas, psicóloga clínica e terapeuta familiar, descreve o que toda a gente vê: “As bonecas têm ainda algumas características dominantes, quer no que diz respeito à origem populacional (caucasianas) e à forma do corpo (magras), quer em relação a outros aspetos, por exemplo, sem óculos, sem aparelho nos dentes, sem qualquer tipo de dificuldade, seja motora, visual, auditiva ou outra”. Ou seja, falamos de brinquedos e bonecos “que traduzem uma imagem que é valorizada pela sociedade atual, mas que não corresponde, de todo, à realidade e à diversidade existentes”, repara.
Aos três anos, as crianças já sabem agrupar as pessoas por género e por pertenças racializadas. Mariana Miranda, psicoterapeuta, terapeuta de casal e familiar, professora e investigadora, destaca este ponto e acrescenta que há uma tendência clara para que os mais novos prefiram bonecos mais parecidos consigo. “Mas há uma exceção: muitos meninos negros preferem bonecos brancos. Porquê? Porque vivem numa sociedade racista e numa sociedade que quer que o que é diferente que assimile.” E, desde uma idade muito precoce, “as crianças negras têm consciência dessa desvalorização da sua cor”.
Educar para a diferença
Brinquedos inclusivos? Há alguns, mas ainda são poucos, muito poucos. Rute Agulhas avança com mais cenários. “Uma criança negra, asiática, cigana, que se desloque numa cadeira de rodas, com trissomia 21 ou cega, por exemplo, mais dificilmente vai encontrar brinquedos que possam traduzir aquela que é a sua realidade.” O que causa algum desconforto. “Não sendo esta uma situação traumática, não deixa de poder gerar algumas emoções mais desagradáveis, como ansiedade, tristeza ou sentimentos de inferioridade”, observa a psicóloga clínica.
O mercado oferece o que a sociedade quer. E diversidade é uma palavra que normalmente não encaixa em vários contextos e que raramente sai da teoria para se concretizar na prática. O papel dos pais e educadores é fundamental, apesar dos constrangimentos, de um mercado pouco sensibilizado para estas matérias de brinquedos inclusivos, que reflitam a diversidade da população. “Os pais e educadores podem e devem educar para a aceitação da diferença, numa perspetiva de inclusão, aproveitando desde logo a capacidade de faz de conta e a imaginação da criança”, diz Rute Agulhas. Há atividades que podem, de alguma forma, colmatar essa lacuna. Modelar bonecos com plasticina das cores que se quiser, construir brinquedos, criar histórias e personagens, fazer teatros, desenhar.
A diversidade nas brincadeiras não é um mero pormenor. Tem uma enorme importância. Há, porém, areias na engrenagem, obstáculos, barreiras, ideias preconcebidas. Há um caminho a fazer. Mariana Miranda chama a atenção para esses aspetos. “Aliás, o preconceito racial dos pais está fortemente relacionado com o preconceito racial dos filhos. Os filhos são muito atentos aos pais, tanto a demonstrações explícitas de racismo, mas também se um pai fica tenso quando é uma médica negra que atende o seu filho no serviço de urgência.” Como é que os pais brancos podem apoiar ações antirracistas? Mariana Miranda responde. “Garantindo a diversidade nas brincadeiras dos filhos (nas séries, nos brinquedos), comprando brinquedos produzidos por pessoas e empresas afrodescendentes, e apoiando a contratação de pessoas negras nas empresas em que trabalham, de brinquedos, mas não só.”
O foco está também em quem manda. “É fundamental que o mercado compreenda que deve apostar em brinquedos mais inclusivos”, considera Rute Agulhas. Mariana Miranda concorda e salienta o papel que as empresas podem ter. “Há décadas que existe investigação que comprova os benefícios da gestão da diversidade na gestão de recursos humanos em empresas. Quando nos focamos na gestão desta diversidade desde a infância, estamos a contribuir para um mercado de trabalho que se consegue basear nas competências de um grupo mais alargado, com maior capacidade de inovação e de gestão de conflitos”, especifica.
Há quatro anos que Fernanda Varela Gameiro faz bonecos de pano à mão, representativos, inclusivos, personalizados, que vende através das redes sociais e de mercados e feiras em que participa. As bonecas têm roupa para trocar e as encomendas não são apenas nacionais, já recebeu pedidos dos Estados Unidos, de Inglaterra, da Bélgica. Cada boneco que faz é único, feito e pintado à mão, igual a si próprio. A diversidade existe e a representatividade importa.