Valter Hugo Mãe

A morte do silêncio


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Já não estamos sós em lugar nenhum, eu sei, mas que não possamos ficcionar a solidão dentro de nossa casa torna-se desolador.

Eram exactamente 5 e 14 da madrugada de sábado quando um algaraviado passou pelo centro de Paredes de Coura com uma daquelas motorizadas às quais retiram a panela e fazem um barulho insuportável de rebentação de guerra. Tão desmesurado barulho que julgo ser impossível alguém ter continuado a dormir. Zanzou por minha rua acima e pela rua seguinte abaixo nessa explosão corneteira insuportável em que simplesmente não consegui acreditar. Por um instante, poderia ser do meu sonho, algum espanto da imaginação a ironizar as casas então calmas que via pela minha varanda.

Por volta das 9 da manhã a churrasqueira liga uma exaustão que, na chaminé levantada ao nível da minha varanda, emite um ruído contínuo que me emerge numa indústria. Nas janelas onde me passa o sol impõe-se esse ruído durante o dia e torna-se impossível abstrair dele senão criando uma camada de som ainda mais intensa que o cubra. Tenho de colocar música, mesmo que queira apenas o silêncio para poder melhor pensar.

Ao fim da tarde, chega a criança da vizinha de cima e grita o tempo todo num entusiasmo pela vida que me desespera. Julgo que está de auscultadores jogando algo por Internet e gritando em sobressalto contínuo dizendo: lo siento, yo lo siento. Pode ser venezuelano, talvez chileno. Não me parece espanhol. Há um sotaque distinto. Aos fins-de-semana, grita até à meia-noite, ri, bate os pés no chão, é profundamente feliz.

Quando explico que estou em Paredes de Coura a escrever, urgindo pelo sossego, todos me entendem. Estas são terras de outro tempo, onde ainda se passa nas curvas cerimoniosas das estradas que abeiram os cafés, as capelas, as descidas ao rio. Percorrer o concelho é verdadeiramente estar no seu circuito vivo e encontrar as pessoas esparsas que são de fácil conversa e nos acolhem sem resistência. É o lugar perfeito para o silêncio se, afinal, o silêncio ainda existisse.

Temo que haja morrido. Que sobre apenas na fotografia que tiramos e que ostenta o arvoredo indiferente, a luz bonita, a amplitude que nem cabe nos olhos. Na fotografia, tudo convence da quietude, da demora boa das coisas, a gentileza abundante do cuidado humano, da graça. Na fotografia, tudo convence a existir aqui um livro à espera, todos os livros à espera.

Creio agora que nunca escrevi num lugar tão ininterruptamente debaixo de barulho. Nunca como nestas semanas me ocupou mais a necessidade de inventar silêncio, criando estratégias contra a imposição da presença dos outros. Já não estamos sós em lugar nenhum, eu sei, mas que não possamos ficcionar a solidão dentro de nossa casa torna-se desolador.

É meia-noite e um minuto de domingo. A criança dos vizinhos de cima grita: no, no, no, joder, tio. Joder, tio. Não ri. Talvez esteja a perder. Bate mais com o pé no chão. Somos todos assim. Quando nos lixamos batemos com o pé no chão.

Subo ao andar de cima. É meia-noite e meia. A televisão está em altos berros num canal falado em castelhano. Por mais que bata à porta ninguém atende. Fico na dúvida se estão mortos e se ouço a criança a rir como assombração, ou se ficaram surdos de tanto barulho que fazem. Talvez seja eu quem esteja a sonhar desde madrugada, quando o outro passou de mota por aqui fora.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)