Rui Cardoso Martins

A cana de pesca rotária

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Tantos advogados, juízes e magistrados na sala! Quando entrei, já transbordava de ofensas e de ofendidos. O presidente de um clube de Rotários acusou de perseguição e difamação uma mulher que, antes, o acusara de não ter idoneidade para o cargo e de lhe cobrar milhares de euros indevidos, enquanto advogado. A mulher escrevera emails, numa rede de denúncia online que abalou todos os que conheciam o homem e, claro, o próprio. Ele estava lá atrás, de ofendidas pernas traçadas, ela era uma caninha loura ao vento no banco dos réus. A advogada de acusação perguntava a uma testemunha se as mensagens distribuídas na Internet tinham afectado o seu cliente. Ele disse que tinha sido “um grande transtorno”. Depois, o advogado dela, com olhos de velho leão, tentou capturar a testemunha que recebera os terríveis mails.

– Bom dia, colega. Sei que tem funções importantes na direcção do Rotary…

Colega? Já iríamos perceber a apresentação. O velho advogado, compacto e grisalho, ia tentar entalá-lo.

– Pergunto se sabe que o que estava em causa nos mails eram uns honorários que teriam sido cobrados e uma execução. Não sei se sabe que à executada, que trabalhava com um carro Uber, foi-lhe executado o carro e ficou sem trabalhar. Não sei se sabe que lhe foi penhorada a conta…

– Ó sotor…, cortou a juíza.

Não o deixava fazer a pergunta. Via-se, no velho leão, a necessidade de mostrar que a experiência, a vida, lhe davam o direito de ser maestro da orquestra.

– Eu faço a pergunta directa!

– Fará a pergunta por meu intermédio. Qual é a questão que o sotor quer colocar?

– Sotora juíza, eu posso fazer a pergunta directamente, sotora!?

– Não.

– Quero ditar, agradeço que me deixe ditar para a acta!

[E o velho advogado estava também a gritar para os meus papéis em branco, a caneta na minha mão, eu a escrever esta acta:]

– Sotor, é seu direito ditar para a acta. Quando quiser, pode ditar, mas respeitando o tribunal e o sítio onde está.

– Com todo o respeito então…

– Pronto. Então vamos acalmar-nos… O sotor já está calmo para continuar a audiência?

Fez-se, como é natural, silêncio debaixo do tecto falso do tribunal.

– Como advogado da arguida, não estava a fazer nenhuma pergunta impertinente à testemunha e acho que é importante para a descoberta da verdade a interacção directa entre o advogado e a testemunha na sua inquirição.

Silêncio. A juíza mirou o infinito jurídico.

– Senhor doutor, é-lhe dada a testemunha para esclarecimentos sobre o depoimento que prestou. Se quiser fazer algum esclarecimento, qual é o esclarecimento que o sotor quer?

– Posso fazer o esclarecimento?

– Por meu intermédio, senhor doutor, suspirou a juíza, como se repetisse a tabuada do 2×2.

Os olhos do velho leão espetaram-se no céu. Não rugiu.

– Se para o perfil do rotário, nomeadamente em cargo de direcção, não é importante comunicar o facto de um candidato à direcção ter deixado uma cliente… penhorando-lhe o carro e a conta….

A juíza disse que a testemunha só respondia se quisesse. Esta quis.

– Para nós, fundados há mais de cem anos na ajuda aos mais desfavorecidos… não somos uma associação de caridade, nós gostamos de dizer que damos a cana em vez de dar o peixe.

– Segundo o provérbio chinês, acrescentou a juíza.

– Eu não posso dar uma resposta cabal aqui ao senhor professor, que aliás foi meu professor na faculdade, e dizer se isso tem relevância ou não, porque eu não tenho os dados, para ser sincero, para fazer essa avaliação.

E a jovem advogada, irónica, de esguelha para o velho advogado:

– Não entendo o que é que são estes esclarecimentos…

– Pois, dá-me ideia que há muita gente que não sabe o que são esclarecimentos, concordou a juíza, a picar.

– Ó sotora, isso é agressivo, estou a fazer o meu trabalho e… Eu não admito que diga que sou ignorante, não admito que diga que sou ignorante!

Agora rugia o leão.

– Eu não lhe chamei ignorante…, assobiou a advogada.

Tantos advogados por metro quadrado! Até com cana é difícil.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)