Viver sozinho não é estar sozinho

Há quase um milhão de portugueses a viver sozinhos, o que representa cerca de um quarto do total dos agregados domésticos (23%) (Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

O estado de emergência esbateu os contactos sociais que se faziam na rua. As pessoas que vivem sozinhas são as que enfrentam maior isolamento. Mas não fazem disso um drama.

O último dia de vida relativamente normal para Raquel Costa foi 9 de março. Desde aí, a jornalista de 37 anos passou a regime de teletrabalho e, como vive sozinha desde 2017, consegue contar pelos dedos de uma mão os contactos pessoais ao longo destes quase dois meses. Fez uma caminhada com uma amiga pouco antes de ter sido declarado o estado de emergência e, umas semanas depois, apareceu-lhe outra amiga à porta do prédio a deixar uma caixa de bolos. Os dias são passados sem ver ninguém, exceção feita para aqueles com quem se cruza na rua quando faz as suas caminhadas ou as breves interações na altura de fazer compras.

Pesam-lhe um pouco as saudades dos amigos e principalmente da família, que vive longe, e há sobretudo uma grande estranheza que sente: a ausência total e tão prolongada de qualquer contacto físico com outro ser humano. “Depois de tanto tempo sem um abraço, um toque ou um beijo parece que o corpo deixa de existir. É muito estranho”, conta.

Apesar de lidar bem com o isolamento, Raquel acha que não fomos feitos para estarmos sozinhos e, se pudesse escolher, preferia partilhar a vida com alguém. E isto era algo que já sentia antes da quarentena forçada. Mas, por outro lado, dá graças por esse não ser o caso agora. “Sei que pode parecer estranho, mas, nesta fase, acho que é uma sorte enorme não ter marido e filhos. Tenho necessidade de ter espaço e tempo para mim, e ia-me ser muito difícil. Admiro imenso a forma como as pessoas que têm crianças, sobretudo pequenas, estão a conseguir gerir o confinamento.”

O seu grande receio é habituar-se à nova rotina. Acomodar-se e desistir. “Estar solteira aos 37 anos às vezes pode ser difícil e, nesta fase, é mais fácil: não se pode sair, não se pode estar com pessoas, não se pode interagir. Ou seja, tenho desculpa para não fazer nada disso. O meu medo é que quando isto acabar não tenha vontade de conhecer pessoas novas, de enfrentar frustrações e desilusões. Acho que corro o risco de ficar demasiado confortável com a solidão. E isso assusta-me.”

Quem, por outro lado, não se sente nada assustada com a ausência de pessoas é Bella de Paulo, uma psicóloga social que se tem dedicado a estudar e escrever sobre os vários aspetos da vida das pessoas solteiras. Ela é autora de livros como “Singled Out: How Singles Are Stereotyped, Stigmatized, and Ignored, and Still Live Happily Ever After (Solteiros: como são estereotipados, estigmatizados e ignorados e, mesmo assim, vivem felizes para sempre – tradução livre, sem edição em português), tem 66 anos e é desde sempre uma solteira convicta que vive sozinha. Agora está de quarentena na sua casa na Califórnia há um mês e meio. “Não, ainda não estou entediada. Eu raramente me sinto entediada”, garante em entrevista por email à “Notícias Magazine”. “E também nunca desejei ter outra pessoa a morar comigo”, acrescenta. “Com pandemia ou sem ela.”


“Nesta fase, acho que é uma sorte enorme não ter marido e filhos. Tenho necessidade de ter espaço e tempo para mim” Raquel Costa (jornalista)
(Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

Embora não seja o seu caso, concede que é possível que algumas pessoas que geralmente adoram ficar sozinhas passem a ter dificuldades durante a pandemia. “Existem vários fatores que tornam estes tempos desafiadores para os solteiros e o primeiro deles é que estar sozinho é uma imposição, não uma escolha, como habitualmente. Além disso, isto já dura há algum tempo e ninguém sabe ao certo quanto tempo mais vai durar.”

Por outro lado, preocupa-se também com o problema oposto: as pessoas que estão habituadas a viver sozinhas e que, com as quebras de rendimentos motivadas pelo despedimento ou lay-off, poderão ver-se obrigadas a partilhar casa. “Isso pode ser muito difícil. E penso que será importante que as pessoas nesta situação consigam desenvolver estratégias para ter espaço e tempo para si, seja no seu próprio quarto, seja tomando um longo banho, dando um passeio na natureza, ou conduzindo.”

Viver sozinho não é estar sozinho

Há quase um milhão de portugueses a viver sozinhos, o que representa cerca de um quarto do total dos agregados domésticos (23%). De acordo com dados da Pordata relativos a 2019, são mais precisamente 934 mil os chamados agregados familiares unipessoais, ou seja, de uma pessoa só.

Mas estar sozinho e sentir solidão não são sinónimos. “A solidão acontece quando as pessoas desejam mais ou melhores relações do que as que têm. Uma pessoa pode viver sozinha, ter uma vida com poucos contactos sociais e não se sentir nada só. Da mesma maneira que alguém pode viver rodeado de gente e sentir a mais profunda solidão”, define Luísa Lima, professora de Psicologia Social no ISCTE.

Assim, acredita que o isolamento social “não tem de ser necessariamente mais difícil para as pessoas que vivem sozinhas”, embora admita que possa colocar mais desafios àqueles para os quais viver sozinho não foi uma opção, como as pessoas viúvas. E entente que os grandes desafios do estado de emergência são iguais para todos, quer se viva só ou acompanhado. “O sentimento de se estar mais isolado é comum a toda a gente e a sensação de perda de autonomia também, sendo que isto é mais evidente para as pessoas mais velhas que, pertencendo ao grupo de risco, se veem privadas de poder fazer coisas que faziam antes, como as suas próprias compras de supermercado.”

O outro grande desafio é podermos continuar a sentirmo-nos nós mesmos quando perdemos muito do que somos. “Por exemplo, quem era social e culturalmente muito ativo – ia jantar fora, ver concertos, visitar museus e estava com amigos – e agora se vê privado de tudo isso. Se bem que, na generalidade, está a haver criatividade: as pessoas assistem a concertos online, visitam museus online, jantam com amigos através das aplicações de videochamada. É importante tentar manter esses aspetos de quem somos, neste caso através das tecnologias.”

É precisamente isso que Raquel Costa tem feito, tanto através de telefonemas e videochamadas com os pais e com os amigos, como através da sua página no Facebook. Autora há seis anos da página “A Gaja” e mais recentemente administradora de um grupo pequeno de solteiros, o “Livres para Amar”, acaba por interagir diariamente com muita gente no universo virtual. E reconhece que isso ajuda. Desde que começou o isolamento iniciou mesmo um podcast, chamado precisamente “Sozinha em Casa”. “É uma forma de partilhar as coisas que vejo e penso durante esta fase e também um pequeno contributo para as pessoas se distraírem e não pensarem nos problemas.”

Saudades de ir trabalhar

A propósito do estudo que realizou em 2015, “Ter amigos faz bem à saúde. Mas será que os amigos do Facebook contam?”, a psicóloga social Luísa Lima dizia que “o contacto virtual com os amigos engana a fome mas não sacia”. Agora, no entanto, é o que nos resta. “O que a investigação tem mostrado é que a possibilidade de estar em contacto com toda a gente com tanta facilidade, através das redes sociais, não está associada a uma diminuição do sentimento de solidão. Mas isto que estamos a viver é diferente, não está estudado. Agora todos estamos dependentes da tecnologia para falar com os outros. E creio que, apesar de tudo, é possível estabelecer contactos íntimos e significativos, sobretudo com pessoas que fazem parte da nossa vida.”

As tecnologias são úteis, mas não convencem muito Tomás Martins de Brito. “Os telefonemas e as videochamadas ajudam, mas acaba sempre por parecer um contacto mais formal. E é certo que umas brincadeiras nos grupos de WhatsApp animam, mas do que sinto falta é do contacto humano presencial, que nenhuma destas coisas substitui”, diz o consultor imobiliário de 40 anos.

Tomás já trabalhava muito a partir de casa porque não tem um horário de trabalho fixo nem presencial. Apesar disso, fazia questão de ir todos os dias à sua agência. Passava por lá a manhã ou a tarde, almoçava quase todos os dias com os colegas e ficava um pouco a conversar sobre os clientes, o mercado, os negócios em andamento. “Fazia isso exatamente para ver pessoas e para não estar tão isolado. Para socializar, porque fechado em casa ‘embrutece-se’ um pouco.” Agora isso deixou de ser opção. E o trabalho também abrandou: “Os negócios que tinha em andamento não caíram, mas está tudo parado a ver no que é que isto vai dar”.

“Tenho um pequeno jardim, o que é um escape enorme: posso apanhar ar, fazer jardinagem, entreter-me a arrumar coisas lá fora”
Tomás Martins de Brito (consultor imobiliário)
(Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

Porque tem mais tempo, retomou hábitos antigos. “Ia praticamente sempre comer fora ou buscar comida e agora cozinho imenso. Sempre foi uma coisa que gostei de fazer, perdi esse hábito e agora retomei.” Fora isso, tem tentado manter a normalidade possível: começa a trabalhar logo às 7.30 horas, como sempre, porque é ao início da manhã que sente que é mais produtivo, e não se deita mais tarde do que o habitual.

Mas há dias que lhe custam a passar, assim esvaziados dos momentos na agência, das visitas com clientes aos imóveis, das idas ao ginásio, dos jantares e saídas frequentes com amigos. Sente que está dependente da meteorologia para o dia ser pior ou melhor. “Tenho um pequeno jardim, o que é um escape enorme: sempre posso apanhar ar, fazer um pouco de jardinagem, entreter-me a arrumar as coisas lá fora. Os dias de chuva, em que não posso fazer nada disso, são os mais chatos. Estar sol melhora muito os meus dias.”

E o que garantidamente também melhora muito os seus dias é que não está completamente sozinho. Não tem pessoas em casa, mas tem o Panda, o seu grand danois. “Há vida dentro de casa. Faz-me imensa companhia”, assegura. Há alturas difíceis, quando tanto do que lhe faz falta está para lá da porta que convém não ultrapassar e não há mais ninguém por perto. Mas também é perentório: “Aguento o tempo que tiver de ser. Não vou prevaricar”.