Tuk-tuk selvagem em Lisboa
Regresso ao tempo de há três semanas, à pré-história da Covid-19 que arrasa hospitais, vidas, mercados e hábitos e ameaça levar para a ciência da espeleologia turística os anos e décadas por vir. Repentino como o meteorito que extinguiu os grandes sáurios, ou dinossáurios, como diz o Professor Galopim de Carvalho, com quem aprendi a inesperada geologia de Lisboa. Há 70 milhões de anos havia vulcões que deram o basalto das pedras negras da calçada portuguesa. O mar avançou com invertebrados, depois retrocedeu e vieram mastodontes e crocodilos gigantes nas águas rasas. Mais tarde, elefantes, rinocerontes, leões, auroques, ursos, toda uma série de répteis e mamíferos em disputa do habitat.
Um dia (num repente agora longínquo), as colinas de Lisboa encheram-se de tuk-tuks asiáticos, adaptados ao clima e dieta mediterrânicos, que disputavam o espaço a peões, automóveis, autocarros, a eléctricos do Martim Moniz a Campo de Ourique. O espaço não chegava para todos. No tribunal, um condutor de tuk-tuk negava há dias ter rebentado a cabeça a um guarda-freio reformado do eléctrico 28. Foi no Castelo, quando mal se podia caminhar na Babel lisboeta. O tuk-tuk estacionara numa paragem de autocarro. Um homem grande explicava-se à juíza:
– Eu tinha clientes no tuk-tuk que queriam sair. Um casal com dois filhos. O senhor era deficiente físico. Chegou o autocarro 37, abriu a porta, saíram quatro homens e começaram logo a insultar. Não liguei. O senhor José continuou a insultar, cada vez mais agressivo. Insultos gravíssimos, ordinários, cada vez mais agressivo, sempre atrás de mim a insultar. Começou a insultar a minha mãe, atrás de mim. Eu parei o tuk-tuk, saí. Parei para dizer que não tinha medo dele. Ele pegou numa pedra da calçada.
Ameaçava, continuou o homem, que lhe ia bater no peito e ele empurrou-o para se defender, pois tem “grande costura no peito”.
– Fui operado ao coração. Não usei nem barra, nem ferro, nem ferramenta. O senhor caiu para trás. Eu acho que bateu com a cabeça, não tenho a certeza, depois até o ajudei, fiquei ali ao lado. Ele perguntava: “A minha bolsa?!” Eu disse: “A sua bolsa está aqui”.
A verdade é que fugiu do local. O “perigo” entrou na sala de audiências e era um homem minúsculo. José nasceu em 1948, mora na Costa do Castelo, foi guarda-freios:
– Quando cheguei ao largo do Contador Mor, o tuk-tuk empatou o autocarro. Eu disse: “O senhor não tem vergonha de estar a ocupar a paragem do autocarro?”. E ele responde que “eu quero é que você vá para a coisa da sua mãe, você deve ser um bom filho da puta”. Eu só lhe chamei a atenção. Depois ia a descer a rua e levei uma pancada na nuca.
Sentiu a pancada ao cimo da cabeça, “qualquer coisa redonda, ou um pau, ou um cabo de uma ferramenta”. Acordou já na ambulância, a cabeça toda ligada. Entrou no hospital à sexta-feira, saiu no domingo, voltou segunda-feira porque recaiu. Toma comprimidos por causa das tonturas e da fala. As testemunhas oculares da agressão eram todas turistas. Nenhuma veio ao julgamento contar o que viu, voltaram para casa. Não voltarão tão cedo, a selva fez-se deserto, o mar de turistas retrocedeu. Um amigo do senhor José contou a mudança depois da agressão.
– Assisti a uma vez, na segunda vez em que ele esteve muito mal. Até o amparei e tivemos de chamar o INEM. Ele não dizia coisa com coisa. As coisas não correram bem para aquele lado. Ele ficou atrofiado. Já não é o mesmo.
Outro amigo disse:
– Estávamos no Miradouro de Santa Luzia a ouvir música. Estão* sempre lá jovens a tocar e a cantar. Nem vi o tuk-tuk. Alguém disse: “é o 28”, era a alcunha dele porque conduziu muito o eléctrico 28. Estava encostado à parede, cheio de sangue. “Como é que te chamas?”; “Não sei. O que estou aqui a fazer?” Nunca lho disse a ele – e o amigo olhou para José -, às vezes muda de conversa e a gente diz: “Este gajo não está cá hoje”.
O condutor do tuk-tuk foi condenado por ataque “gratuito e com insídia” a ano e meio de prisão, com pena suspensa. Mais 2 500 euros de indemnização a José. E será obrigado a um programa de controlo da agressividade. Isto ainda estava a começar.
*melhor diríamos: estavam.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)