Rui Cardoso Martins

Tem calma que eu vou aí

(Ilustração: João Vasco Correia)

O homem queria tudo separado: as ameaças escritas eram verdade, o resto – perseguições, ameaças com caçadeira – uma completa mentira da mulher. Os pormenores da violência iam mostrar-se como a lata de conservas inchada que rebenta e de lá sai uma massa espumosa, putrefacta.

– Não me recordo de maneira nenhuma de ter dito isso.

Amnésia da bebedeira de comprimidos contra a depressão, as dívidas com a cadela, a casa, o desemprego. A culpa era toda da mulher. A cara do homem, no tribunal, parecia a bandeira de um país distante: o azul celeste da máscara, a testa sanguínea. O homem trazia uma teoria: a ideação suicida, disse ele, é uma coisa que acontece: uma pessoa mata-se.

– Uma coisa é uma pessoa ir ao metro e suicidar-se, outra é estar em completo burnout. Qualquer pessoa que não esteja com uma bebedeira de comprimidos não envia essas mensagens. Eu enviei. Uma coisa é uma pessoa ir num carro e o carro parar em cima da linha de comboio e ter um acidente, outra coisa é meter o carro debaixo do comboio.

Qual era o seu estado quando se separou dela e se viu falido?

– Eu dormia e chorava, chorava e dormia.

Às vezes, dormia a chorar. O homem saiu por ordem da juíza e entrou a mulher. Ela aguentou-se no princípio do tempo de “comunhão de mesa, cama e habitação com o senhor H”.

– Foram pelo menos seis, sete anos. Conhecemo-nos em 2007, a relação foi evoluindo e fui ficando às vezes em casa do senhor H. Fiquei para aí cinco anos, não consigo precisar porque foi de forma gradual. Acabar, foi depois das férias de 2017. Várias vezes eu tinha feito as malas. O comportamento dele foi piorando e fui falando com uma amiga que me disse que não era normal. Depois decidi deixá-lo.

Agora a mulher chorava, molhando a máscara.

– Nos últimos dois anos, 2015 e 2016, eu era obrigada a ter relações sexuais de manhã, à noite, de madrugada, a que horas fosse.

Agora não era chorar, era outra coisa.

– Inclusive… inclusive disse que queria uma relação a três, com a minha filha. Eu dizia que isso não podia ser!… Se eu recusava ter relações, ele mandava-me ir para a sala. Muitas vezes eu entrava em casa, ele estava atrás da porta do quarto, metia… o instrumento de fora e obrigava-me a fazer. Puxava-me a cabeça à força.

– Quer isso dizer que a obrigava a praticar sexo oral?, disse a procuradora.

– Sim. Uma vez em que me recusei mesmo, deu-me um pontapé e caí em cima da cama. Obrigava-me a fazer sexo quando eu não queria, a ver-se ao espelho. Mas o que me incomodava mesmo era ele falar o nome da minha filha.

O homem tinha uma caçadeira.

– Foi buscá-la a Tomar. Abriu a mala do carro onde estava um saco de plástico. Abriu o saco de plástico e disse: “Eu vou-te matar com esta espingarda”.

Semanas depois, num parque de estacionamento, apareceu.

– Era o mesmo saco a tapar a arma que me apontava à cabeça.

– A que distância?

– A distância que vai daqui para aí, mais ou menos. Meti-me no carro, fui para Loures, enfiei-me numa estrada de terra. Fiquei lá duas horas escondida. Liguei à minha mãe. Voltei. No outro dia, quando cheguei ao carro, tinha o cartão dele na porta do carro. Um cartão da Remax, com a fotografia.

De braços cruzados, a sorrir, vendas e compras. Quando ela foi buscar pertences, trancou a porta e insultou-a tão alto que os vizinhos vieram à porta. Tapou-lhe a boca, os vizinhos desistiram.

– Levou-me para o quarto. Tive de me deitar. E violou-me.

Insultos por telefone e sms: puta, pêga, gorda, feia, malcheirosa. Ameaças: já tinha uma pessoa, bastavam cinco mil euros; tinha ido a uma bruxa. Mandou foto de um cão em cima de uma campa. Disse-lhe que com uma injecção ia ela, mais a cadela, depois ele. “Íamos os três da mesma maneira.” Uma foto vestido de pirata: “Meteste-me com o pirata dos Sete Mares”. Telefonava com a paz mentirosa: “Tem calma que eu vou aí”.

De manhã, à tarde, à noite, de madrugada.

Ao mestre Vicente Jorge Silva (1945-2020), que há 30 anos me desafiou a escrever crónicas de tribunal.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)