O que é que o Norte de Portugal tem? “Trabajo”

Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens

É uma manhã chuvosa de janeiro em Monção, o sol bem escondido, as nuvens escuras a puxar à indolência. Luisa Lago, 39 anos, resiste ao enfado do tempo ainda assim. Move-se por entre as mesas do restaurante que gere com genica contagiante. “Buen” dia, saúda Luisa, meio português, meio espanhol, um sorriso rasgado a tomar-lhe o rosto, ela a gesticular sem parar. Natural de O Porriño (concelho da província de Pontevedra, na Galiza), cresceu em Espanha e por lá trabalhou, na área da contabilidade e da administração financeira, durante uns tempos.

“Mas o meu ponto forte sempre foi o contacto com as pessoas.” Por isso, há uns anos, largou o emprego e foi viajar pelo mundo. Para garantir sustento, ia trabalhando na restauração e nas limpezas. Durante ano e meio. Quando voltou, ainda seguiu para Tui (Espanha), para a hotelaria. Mas precisava de mudar. Por isso, derivou para o Algarve. Não se convenceu à primeira.

“O que se faz lá não é bem atender, é mais despachar.” Então rumou a norte. Ficou por Braga durante uns tempos. Foi aí que conheceu a atual patroa. E lhe propôs porem em prática um conceito que já andava a magicar há algum tempo. “Juntar as tapas espanholas com vinho português. Apaixonei-me pelo vinho português e tinha muita vontade de o dar a conhecer. Além disso, acho que os galegos e os portugueses têm muito em comum.”

“A maior parte dos nossos clientes são galegos. Até porque há cada vez mais espanhóis a viver e a investir aqui”
Luisa Lago

Foi, portanto, da vontade de juntar as duas culturas que nasceu em Monção, no final de 2018, um restaurante de tapas que também é uma pastelaria. E que pretende chamar tanto portugueses como espanhóis. “A maior parte dos nossos clientes são galegos. Até porque há cada vez mais espanhóis a viver e a investir aqui.” O facto de o espaço estar instalado no Rio Park, a 500 metros da Galiza, também ajuda. Bem como os pratos típicos da região.

Tortilhas, empanadas galegas, tostas tipicamente espanholas. “Faço tudo sozinha”, orgulha-se Luisa, sempre a mil. Velhos hábitos que trouxe do outro lado da fronteira. “Em Espanha, há mais stress, mais pressão, estou a tentar aprender a ser mais calma”, explica, a rir. Inculcar na generalidade dos portugueses o tão típico hábito espanhol das tapas ao fim da tarde é que ainda não conseguiu. Mas já se vai dando por feliz pela recetividade que tem tido em Monção. “Têm-me acolhido muito bem.”

O hábito também ajuda ao caso. Luisa está longe de ser um caso isolado. A galega enérgica que dá vida ao “Saco de doces” personifica uma tendência que se tem feito realidade irrefutável: o norte de Portugal é cada vez mais um chamariz para a vizinhança. Os números provam-no. Segundo dados divulgados pela Confederación de Empresarios de Galicia em outubro do ano passado, registaram-se, em 2018, 4 194 contratos assinados por espanhóis em Portugal, o que se traduz num aumento de 19% em relação a 2017.

Se estendermos a análise à última década, a subida é colossal: de 2009 para 2018, o número de galegos com contrato de trabalho no norte de Portugal quadruplicou. Ainda de acordo com os Indicadores de Movilidad Transfronteriza 2019, que desde 2010 analisa o intercâmbio de trabalhadores na Euroregião Galiza-Norte de Portugal, grande parte da mão de obra que chega de Espanha vem para trabalhar nas fábricas.

Luisa Lago, galega de 39 anos, mudou-se para Portugal há dois. Junta as tapas espanholas com o vinho português (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

É o caso de Marcos Domínguez e Sílvia Cruz. Ambos espanhóis, ambos na casa dos 40 (ele com 40 certos, ela com 42), ambos funcionários da Gestamp, uma multinacional que se dedica ao desenvolvimento e produção de componentes automóveis. Só em Portugal tem três unidades: Vendas Novas, Aveiro e Vila Nova de Cerveira. É nesta última, quase a tocar a fronteira espanhola, que encontramos Marcos e Sílvia. Passa pouco das duas da tarde quando o galego natural de Tui, piercing no sobrolho e lancheira a tira-colo, cruza o portão da fábrica, em passo acelerado. É final de turno, hora de regressar a casa, concluída a labuta que arrancou de madrugada.

Sílvia aparece pouco depois. Estreou-se a trabalhar na Gestamp há mais ou menos dois anos. Marcos há cinco. Mas vieram pelo mesmo motivo: o desemprego. Sílvia trabalhava há 13 anos numa fábrica de congelados que fechou. Esteve mais de cinco anos desempregada, até que a irmã lhe falou de uma fábrica no norte de Portugal que estava a contratar. Marcos teve mais sorte, dentro do azar. Trabalhou primeiro numa fábrica do setor automóvel, depois numa loja de móveis. Mas também ficou sem trabalho. Dois dias depois inscreveu-se numa agência de trabalho temporário (tal como tinha feito Sílvia). Quatro dias volvidos, começava a laborar na Gestamp.

Mesmo que os ordenados sejam mais baixos – basta comparar o salário mínimo dos dois países, que em Portugal é de 635 euros e em Espanha de 900 -, por cá há outros atrativos. “Aqui há mais estabilidade. Tem a ver com o tipo de contratos que fazem. Eu tenho um contrato sem termo. Ganha-se algo menos, mas é melhor do que ir para Espanha ganhar mais durante seis meses e depois ficar sem trabalho”, defende Marcos. Sílvia concorda. E ainda deixa elogios rasgados aos portugueses. “São mais companheiros. No trabalho, estão sempre disponíveis para nos ajudar.”

Nove em dez investimentos feitos do lado de cá

Além destes motivos, prontamente apontados por Silvia e Marcos numa perspetiva pessoal e imediata, há outras razões, mais profundas e estruturais, que ajudam a explicar o crescente fascínio dos galegos pelo mercado laboral do norte de Portugal. Uma das mais óbvias relaciona-se, pois, com a taxa de desemprego. Em outubro de 2019, esta taxa fixou-se nos 14,2% em Espanha, mais do dobro dos 6,5% registados em Portugal.

Luís Ceia, presidente da Confederação Empresarial do Alto Minho (CEVAL) e conhecedor profundo da região, no que ao mercado de trabalho diz respeito, expõe outras motivações para o fenómeno. “Desde logo, o forte desenvolvimento industrial que tem havido, particularmente nas regiões raianas, muito direcionadas para indústrias da componente automóvel. Se olharmos para a estatística, para os dez últimos grandes investimentos que houve nesta região [que inclui a Galiza e o norte de Portugal], nove foram feitos em Portugal.”

Sílvia Cruz e Marcos Domínguez cruzam todos os dias a fronteira para trabalhar numa fábrica de produção de componentes automóveis, num dos polos industriais de Vila Nova de Cerveira
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

E porque é que o nosso país reúne condições que favorecem o investimento? Por uma multiplicidade de fatores. “Os salários mais baixos que se praticam cá, a crescente qualificação dos nossos recursos humanos, a questão dos fundos comunitários atribuídos às regiões de convergência, que ainda é o caso do norte de Portugal”, enumera o líder da CEVAL, que aponta também vantagens ao nível da (menor) burocracia. “Isto é uma opinião mais pessoal, mas acho que o facto de no norte de Portugal falarmos de cidades com pequena e média dimensão gera uma maior proximidade. Por exemplo, temos presidentes de câmara que fazem questão de ir buscar os investidores ao aeroporto e de lhes mostrar a cidade.”

As razões para este enamoramento dos galegos pelo nosso país não terminam por aqui. Há as necessidades de recrutamento de quadros especializados em Espanha, onde o desenvolvimento de determinadas indústrias está já mais consolidado, assegurando um certo know-how. Há, garantem os empresários do setor, uma menor conflitualidade laboral – muito graças a uma atividade sindical mais tímida do lado de cá da fronteira – e níveis de absentismo mais reduzidos. E até os acordos de livre circulação de trabalhadores na União Europeia ajudam: quem trabalhe num determinado país e tenha residência noutro goza de benefícios fiscais.

Alfredo Álvarez foi “obrigado” a vir trabalhar para Portugal quando a empresa em que está se mudou para cá (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Francisco Carballo Cruz, professor de Economia da Universidade do Minho, ele próprio um galego que se mudou para o lado de cá da fronteira há anos, destaca ainda a maior facilidade que existe em Portugal para licenciar indústrias. “Na Galiza, há muito pouco chão industrial disponível por preços razoáveis.” Tudo isto gera duas tendências que chamam os galegos para cá. “O recrutamento de profissionais para empresas multinacionais no setor industrial e a forte deslocalização de empresas da Galiza para o norte de Portugal”, refere Francisco Carballo Cruz, que também é membro do Conselho Diretivo da EURES, uma rede de cooperação entre a Comissão Europeia e os serviços públicos de emprego dos Estados-Membros do Espaço Económico Europeu.

Foi precisamente um destes processos de deslocalização que trouxe Alfredo Álvarez, galego de 52 anos, ao nosso país. Funcionário da Pavestone Projects há 25 anos, viu a multinacional em que trabalha mudar-se de Vigo para a zona industrial de Monção há cerca de sete. “A empresa queria ampliar as instalações e lá havia falta de terreno rural”, explica. Como a Pavestone, “há muitas outras empresas” a fazer o mesmo, garante.

Ele, que é maquinista de corte – ou seja, opera as máquinas que tratam de cortar os blocos, as chapas e outros materiais -, lá veio também, mais por necessidade do que por opção. “Mudaram-se para cá. O que ia fazer? Tinha de vir.” Em Vigo, estava a cinco minutos da fábrica. Agora, tem de fazer uma viagem de meia hora para cada lado. De resto, a diferença não é grande, muito menos na forma de trabalhar de portugueses e espanhóis (estima, sem certezas, que atualmente a percentagem ande nos 50%/50%).

Em 2018, havia 2 659 espanhóis a viver no país de origem e a declarar remuneração em Portugal. Ou seja, mais de metade do número de contratos registados por espanhóis no nosso país

Cruzar a fronteira para voltar a casa

Voltando ao relatório elaborado pela Confederación de Empresarios de Galicia, facilmente se percebe que a rotina de Alfredo, que vem a Portugal para trabalhar e regressa diariamente a casa, representa um padrão. Em 2018, havia 2 659 espanhóis a viver no país de origem e a declarar remuneração em Portugal. Ou seja, mais de metade do número de contratos registados por espanhóis no nosso país. Rasgar a fronteira diariamente já se tornou, por isso, um hábito para milhares de galegos. Nalguns casos, um hábito que se repete há uma vida.

É o que acontece com Manuel Ruiz, 60 anos, natural de Ferrol (Corunha). Ainda que esta história nada tenha que ver com o setor industrial. Manuel é médico, especialista em medicina geral e familiar, e trabalha em Portugal há quase 20 anos. No Centro de Saúde de Monção, agora Unidade Local de Saúde do Alto Minho, está há 12. Antes, ainda em Espanha, trabalhou em vários hospitais, públicos e privados, em Santiago de Compostela. Foi médico na tropa e em empresas. “Eram trabalhos bons, mas rapidamente o contrato acabava. Ou porque mudavam os patrões ou porque… sei lá.”

Manuel Ruiz é um dos médicos espanhóis a trabalhar em Monção (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Farto de andar a saltitar, procurou estabilidade em Portugal. Viu um anúncio para o Hospital de Guimarães e fez-se à vida. Depois, ainda passou pelo Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos. E fez a especialidade em Viana. Até que em 2006 se fixou em Monção. Mas continua a viver do lado de lá, em Vigo. “Hoje, se estivesse em Espanha, ganhava mais, mas aqui é mais seguro.” Num centro de saúde em que cerca de metade dos médicos têm proveniência espanhola, garante ter sido sempre bem tratado.

“Até acho que os doentes nos respeitam mais em Portugal do que em Espanha”, considera. Manuel Ruiz faz parte de um contingente robusto de espanhóis que “há 20, 30 anos” vieram para Portugal graças “a recrutamentos massivos na administração pública”. “Nomeadamente na área da saúde”, especifica Francisco Carballo Cruz, professor de Economia da Universidade do Minho. Entretanto, com a melhoria das condições no país vizinho, a vinda desses profissionais estagnou. Hoje, chegam mais para as indústrias. Como fizeram Marcos e Silvia. Alfredo também. Mas há outras áreas apetecíveis para os galegos. A restauração é uma delas.

“Deste lado acaba por ser mais fácil para quem procura trabalho, porque em Espanha há mais desemprego”
Isabel Bugarin

Isabel Bugarin, 52 anos, natural de Tui, é um bom exemplo disso. Casada com um português, vive há 26 anos em Portugal, mas sempre trabalhou do lado de lá, como administrativa. Até que há quatro anos ficou sem emprego. Durante uns tempos, ainda foi ajudar o marido, que tem uma empresa de publicidade. Mas depois a filha, que teve um trabalho de fim de semana numa creperia, sugeriu-lhe que apostassem num negócio semelhante.

Isabel aceitou o desafio. Em 2018, abria, no centro de Vila Nova de Cerveira, a “Entre Sabores”, uma creperia que também é gelataria. Porquê em Portugal? “Do lado de lá já havia uma.” E até ver, garante, a aposta tem sido ganha. “Vem muita gente, muitos turistas, sobretudo espanhóis, ao fim de semana. No verão ainda mais. Há muitos emigrantes. Durante a semana são mais os miúdos das escolas. No geral temos sido bem recebidos. Deste lado acaba por ser mais fácil para quem procura trabalho, porque em Espanha há mais desemprego.”

Isabel Bulgarin, natural de Tui, optou por abrir uma creparia em Cerveira (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

E se o número de galegos a rasgar a fronteira em busca de trabalho aumentou consideravelmente na última década, o contrário também continua a acontecer. Em 2018, segundo a Confederación de Empresarios de Galicia, houve 9 089 contratos de portugueses na Galiza, mais 14% do que em 2017. A diferença é que, neste caso, se olharmos para a última década, o decréscimo é inegável – em 2009, havia registo de 13 156 portugueses a trabalhar nesta região.

Mas o lado de lá continua a fascinar uma parte dos portugueses. Susana Martins, 43 anos, natural de Viana do Castelo e residente em Vila Nova de Cerveira “desde sempre”, é uma dessas cidadãs nacionais que cedeu aos encantos dos galegos. Tanto que, no final do ano passado, abriu em Tui, paredes-meias com Valença, a Concept Store, uma loja de decoração que é também um espaço de eventos, moda e consultoria de imagem. Bancária de profissão, apaixonada pela decoração desde sempre, aflorou a ideia numa conversa com a amiga e decoradora Sónia Carvalho, e rapidamente o projeto ganhou pernas para andar.

Susana Martins, portuguesa que trabalha na banca a tempo parcial, abriu recentemente uma loja de decoração em Tui (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Em maio, compraram o espaço. Sim, em Tui. “Queríamos internacionalizar. E eu quis logo que fosse em Tui, porque sempre me identifiquei muito com a cidade. Acho que tem qualquer coisa de artístico, de especial.” Entretanto, passou a trabalhar na banca só a tempo parcial. E em novembro a “Concept Store” ganhou vida. Com um feedback altamente positivo, garante Susana. Mesmo tratando-se de uma portuguesa a dar cartas em território forasteiro. “Dão-nos muitas vezes os parabéns por termos vindo para cá. Os espanhóis têm muito esta coisa de agradecer os investimentos. Dizem-nos que gostam que estejamos cá. E até já tive quem me dissesse: ‘Ai, vocês têm tão bom gosto. Só podem ser portugueses.'”

Habituada a andar cá e lá desde catraia, Susana não hesita em falar numa relação, entre portugueses e galegos, que é, “no geral, saudável”. “Excluindo talvez alguns picos de tensão, nomeadamente na altura dos campeonatos de futebol”, admite. E não duvida de que as qualidades dos portugueses são cada vez mais valorizadas. “Consideram-nos um povo lutador, culto, resiliente. Mais capaz de dar a volta.” Também a nível profissional. O que pode ser parte da explicação para este fascínio recente pelo mercado de trabalho português.