Rui Cardoso Martins

Mau distanciamento genital

(Ilustração: João Vasco Correia)

Tanto aprendemos em pouco tempo. O que temos pela frente não se pode saber. Que novo tipo de Justiça surgirá para os crimes de sempre, como “ofensa à integridade”? O dia em que o vírus se for, continua o estado de emergência nos gestos e pensamentos? Mudam-se leis? O que quererá dizer “distanciamento social” depois da pandemia? Como punir más aproximações?

Perdoem tanta pergunta filosófica, quase metafísica, mas tenho o caso da fisioterapeuta que pisou os genitais do vizinho com o sapato e isso eu nunca tinha visto. O rapaz até foi para o hospital. Um caso recente, mas o que é recente agora? Para não parecer só para maiores de 18 anos, a acusação contém um castigo infantil: enquanto lhe pisava as partes, torcia-lhe a orelha. Antes disso, o namorado da fisioterapeuta tinha-o esmurrado, caindo os dois homens no espaço entre dois carros.

– Ele confirmou que tinha sido ele a furar o pneu do meu carro e disse que não ia pagar, começou a fisioterapeuta.

Era verdade: houve uma discussão de estacionamento e o vizinho foi lá depois furar o pneu. O resto do depoimento da fisioterapeuta, no entanto, parece um nervo ou tendão torcido.

– Felizmente vivi num ambiente sem violência e não me apercebi que ele avançou sobre mim. O certo é que avançou. O Rodrigo interveio, eu sou mulher, mais fraca… Eles tropeçaram e caíram no passeio. A minha preocupação era identificá-lo e chamar a polícia. Só queríamos identificá-lo.

Mas indo ao centro da questão, para não dizer das pernas:

– Se pus sem querer os pés nos genitais… Eu penso que ele estava com os calções largos e, portanto, posso não ter medido bem as distâncias.

Poderá um dia ser equacionado no Código Penal: incumprimento de distanciamento genital em casos não: a) recreativos, b) amorosos, c) reprodutivos.

– Abomino toda a violência. Não sei ser violenta, no fundo foi a maneira de chamar a atenção dele, disse a fisioterapeuta que usa mãos e pés e abomina a violência.

Ela estava com o namorado num café onde havia mais pessoas.

– Viram-no passar?

– Sim, vi-o passar e dirigi-me a perguntar se ia pagar o pneu. A esplanada, se é que se pode chamar assim, tinha três ou quatro cadeiras. A rua era muito estreitinha. Quando eu o abordei, começou a avançar na minha direcção. O Ricardo desviou-o da minha frente.

– Foi com um soco?

– Não tenho a certeza de como foi. Soco tenho a certeza que não foi.

O juiz suspirou:

– E terá colocado o pé com, enfim, mais ou menos pontaria em cima dos órgãos genitais, e puxou a orelha com ele deitado?

Entrou o rapaz, com a vida toda mudada: geria condomínios, inscreveu-se na Força Aérea. Era a sua rua, desde pequeno.

– Vinha do trabalho, distraído. Fui abordado pela pessoa que começou a agressão. “Então foste tu que furaste o pneu?”. Ao levantar a cabeça, levei logo um soco. Vários pontapés e socos, principalmente na zona da cara. Com toda a gente a assistir. E a seguir veio a senhora que me pisava os genitais e me torcia a orelha.

Balanço dos danos:

– A principal foi a revolta, mais pelo dono do café me estar a ver e não fazer nada.

– Ter-se-á também sentido envergonhado?

– São três pessoas de trinta e tal anos a bater numa pessoa de 21 anos. Não há vergonha nenhuma.

Mas depois admitiu. Um tremor nas cordas vocais.

– Mexeu com o psicológico. Houve qualquer coisa de psicológico. Daí também ter mudado de residência. Nós éramos para ficar a morar ali. Disse à minha mãe que não conseguia morar ali.

A mãe dele explicou a urgência física daquele, por assim dizer, distanciamento social:

– Ainda por cima à frente de um café onde estavam pessoas que o conheciam desde miúdo. E não fizeram nada!

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)