Rui Cardoso Martins

Domingo de Páscoa, 2020

(Ilustração: João Vasco Correia)

Mais de 50 domingos pascais seguidos no Alto Alentejo, hoje não. À volta de costeletas de borrego panadas, cabrito no forno (encontrado a tempo), marinados de véspera num prédio em Lisboa, pensarei: não tenho flores amarelas, não tenho lírios roxos, nem abelhinhas, pintassilgos a cantar, crianças a correr nas vinhas. Não tenho o perfume do alecrim. Mas estarei feliz se tivermos saúde cá em casa, e vós nas vossas de Norte a Sul, nas Ilhas, no estrangeiro, caríssimos leitores da “Notícias Magazine” e do JN. Daqui segue um abraço distante, mas redondo e verde como um seixo do rio, um ovo de melro. Pensarei em todas as pessoas que se foram com a doença, as que partem hoje, e nas famílias feridas como se perdessem um braço ou mesmo a cabeça. O momento não é de iluminação, é de morte e tristeza. Por todos o que viram, no negro torvelinho da pandemia, uma pessoa amada asfixiar e ir-se como uma sombra, sem um último abraço.

Uma vez vi a pneumonia até ao fim. Não sei se é pior ver ou não ver. Mesmo agora a vejo (depois, dizer às crianças que a mamã).

Mas na Primavera de 2020, nestes dias tão parecidos de quarentena, repito porque acredito: a vida triunfa. E cada hora dos meses impenetráveis de crise, desespero, desemprego, até derrotarmos a Covid-19, será uma pequena ressurreição da Humanidade. Agora, uma pequena história de tribunal.

A Páscoa de um pizzaboy

Também não esqueço o entregador de pizzas. Onde estará a esta hora o António? Em casa ou a distribuir tristes pizzas de Páscoa aos confinados da Grande Lisboa? O António, há um mês, estava como nós todos: sem o saber, vivia à beira da sua vida seguinte, desconhecida. Também batia e ameaçava a namorada e foi por isso que o levaram… O polícia do programa Escola Segura, que lavrou o auto de acusação, disse:

– Eu estava de patrulha normal com a minha colega e recebemos uma chamada telefónica da Escola Psicossocial, que é onde andava a Manuela. Cheguei lá e foi a professora que me contou que, quando estava para ir dar uma aula à turma da vítima, a encontrou a chorar e bastante nervosa, e lhe perguntou o que se passava. Ligou para nós.

– Chegaram a ler alguma mensagem recebida por ela?

– Sim, as mensagens que foram transcritas para o auto foram as que vi no telemóvel dela.

– Na altura foi dada alguma explicação pela ofendida?

– Ela disse que o suspeito, com quem ela mantinha uma relação, era violento e já tinha tido situações de agressões anteriores e que, sem que nada o fizesse prever, naquele dia ele tinha enviado aquelas mensagens em que a acusava que ela tinha feito uma conta no Instagram. E ela negava. E que depois ele lhe mandou outra mensagem a dizer: “Logo à noite vais ver, vou-te buscar ao comboio”.

A segunda guarda foi mais clara no medo que encontrou:

– Estava apavorada, precisava de ajuda.

António escutava no banco dos réus. Pernas e braços de atleta, um cabelo rectangular e espesso. Sobre a profissão, disse:

– Distribuição de pizza.

Um “part-time de 300 a 400 euros por mês”.

– Neste momento estou a viver com a mãe da Manuela e com a Manuela. A casa é da mãe.

A viver, como disse a advogada, com a “alegada vítima”. Manuela assegurou no tribunal ter inventado tudo, que ele não lhe bate, que até a mensagem com as ameaças era de outra pessoa.

António foi absolvido. A advogada disse que, aos 21 anos, “encontra-se inserido social e laboralmente, tem residência, tem suporte familiar, social, etc. Mantém uma relação de namoro com a alegada ofendida, portanto está numa situação perfeitamente estável em todas as vertentes da sua vida”. Palavras de outro tempo: perfeitamente estável.

Agora, talvez, na linha da frente da pandemia. Bem os vejo cruzar a rua nas motoretas, como estafetas na guerra, os soldados que alimentam os teletrabalhadores, os que não cozinham e têm dinheiro para glovos e ubers. Saúde, bravos motoqueiros!

E desejo-lhes, António e Manuela, paz e amor e que, depois do trabalho, dos perigos da rua, o vosso lar não contribua com outro part-time: o aumento brutal em curso, na quarentena, da violência doméstica.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)