Rui Cardoso Martins

Dois tiros na perna

(Ilustração: João Vasco Correia)

A mulher falava de coisas de rapazes, crimes com pistolas, ela sabe como são as coisas lá no bairro. Um rapaz deu dois tiros noutro. Taca, taca! Todos fugiram, ela ficou com o rapaz ferido, sangrando na estrada. Era seu namorado. Já não é.

– Era a perna esquerda, a direita, lembra-se?

– Acho que era a esquerda, acho que era a esquerda, não tenho a certeza. Eu já não estou com o rapaz em questão.

– Sim, sim. Não quero mais nada, terminou a procuradora.

A juíza deu a palavra ao advogado do pistoleiro:

– Tire-me só aqui uma dúvida. Disse aqui que “estávamos a cerca de dois metros”, sensivelmente, não é?

– Sim, respondeu a mulher.

– E que foi assim: sem mais nem menos, chegou ao pé dele e disparou-lhe para a perna. Não foi para cima, nem…

– Eu não vi para onde é que o rapaz disparou, que nisto tudo eu estava de costas. Vi que ele disparou e eu não sei se foi intencionalmente, para onde é que foi… não vi nada.

– Você estava de costas.

– Eu estava assim de lado, a cumprimentar o pessoal.

– Você só olha quando ouve os disparos, não é?

– Sim.

– E aí o que é que viu? Viu o homem a fugir?

– Ah, não! Depois eu já nem olhei para ele, porque com isto começou tudo a correr, quando se ouviram os disparos…

– Em concreto, e objectivamente… eu não estou a colocar em causa o que a senhora está a dizer, ‘tá bem?… quero que saiba isso, é apenas um dever que nós temos, nomeadamente eu, não é? Em concreto, a Isabel não viu mesmo ele a disparar!

– A arma lembro-me que era uma coisa, eh pá, uma coisa…

– Mas em concreto, se o viu ou não a disparar… Eu não estou a tentar enervá-la, percebe?

[Nervosa já Isabel estava. Dois buracos vermelhos a esguichar na perna. Não foi no pé, evitou-se a metáfora.]

– ‘Tava na visão, ‘tava na visão, como é que hei-de dizer?

– Periférica!, cortou a procuradora, também a enervar-se.

– Periférica!, agradeceu Isabel, eu apercebi-me do gesto da mão a levantar… mas não houve sequer conversa, não houve nada, foi tudo muito rápido!

Isabel apontou uma cadeira, um móvel, o microfone ao lado.

– O rapaz estava ali. Eu estava aqui. E o meu companheiro devia estar aqui.

– A senhora está virada para o seu companheiro.

– Sim, assim de lado.

– E esse tipo passa por si e vai acertar nele. E viu este rapaz que está aqui a ser acusado a fugir? O que é que a leva a pensar que foi ele que disparou? Você disse que não viu.

A juíza levantou os braços a meio caminho do céu.

– Ó sotor, não foi isso que a testemunha disse! A audiência de julgamento está gravada, portanto, sotor, não vamos repisar uma coisa que já está dita pela testemunha! O que é que o sotor pretende saber mais da testemunha?

– Pretendo saber se de facto viu, ou não, o rapaz a disparar!

– Já está respondido, sotor!

– A visão periférica…!, ironizou um causídico sobrolho.

– Não lhe vou dizer qual era a arma, sei que era uma coisa pequenina, vi-a disparar, mas é com o barulho e com o pessoal todo a fugir. O pessoal mal o viu a levantar o braço, já sabia o que era, já sabia no que se ia dar… Cada vez que se vêem, neste bairro ou noutro, é sempre isto.

– Mas não houve diálogo nenhum?

– Nem boa noite nem nada.

– Foi assim, nem boa noite: “taca, taca!”

– “Taca, taca!” Eu ainda estava a cumprimentar o pessoal!

Ela costumava falar com o atirador, até andou na escola com ele, Isabel nem sequer se metia naquilo, nunca se meteu, explicava, porque mora onde mora e sabe como são ali as coisas, toda a gente que lá pára, as confusões. E, se soubesse o que sabe hoje, não era testemunha, porque sabe que isto só vai trazer problemas.

– Como já me trouxe, eh, eh!

Sabemos o que é um riso nervoso. O de Isabel foi assim de lado, um riso periférico. Taca, taca.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)