O encontro entre dois homens obcecados por descobrirem uma solução para o cabelo que haviam perdido levou à criação de um grupo que está a colocar Portugal no topo do mundo dos transplantes capilares. À dupla Carlos Portinha e Paulo Ramos associou-se agora Cristiano Ronaldo. Juntos inauguraram esta sexta-feira uma nova unidade de saúde, no Porto.
Nos sonhos estava tudo no lugar certo. A família, os filhos, a carreira, a vocação realizada. Tudo, incluindo cada fio de cabelo ordeiramente penteado na cabeça daquele homem elegante, culto, porte atlético, que antes dos trinta anos já se afirmara como um dos maiores especialistas na sua área. Podia chamar-se Cristiano mas batizaram-no Carlos, ter nascido na Madeira mas calhou brotar em Angola, Benguela da capoeira e do café, estudar numa escola pobre do Funchal mas foi parar à problemática Escola do Cerco do Porto. Podia ser futebolista mas é médico. É o médico que está por detrás do sucesso do grupo Saúde Viável, clínicas de transplante capilar que lideram o mercado peninsular e às quais Cristiano Ronaldo acabou de se associar. Conheceram-se há menos de dois anos, o médico e o jogador da Juventus, serão mais parecidos do que sabem, e inauguraram juntos,a na semana passada, mais uma unidade no Porto – a Insparya Science and Clinical Institute é a quinta do porta-aviões fundado por Paulo Ramos, “visionário” e “força motriz” de um projeto que ameaça mudar radicalmente a vida de quem, por qualquer razão, foi perdendo o cabelo.
Estava tudo certo nos sonhos que Carlos Portinha, 45 anos, coordenador clínico de todas as clínicas – duas no Porto, uma em Lisboa, outra em Vilamoura, uma em Madrid, a segunda espanhola a caminho e, em breve, também, Milão, Paris e Bruxelas – sonhava a dormir. Havia coincidência entre o sonho dormido e a vida vivida. Mas a imagem que o espelho devolvia, a cada manhã, teimava em estragar o romance. Quem dera houvesse uma segunda impressão para aquele primeiro encontro matinal com o reflexo. “Tinha um historial familiar de alopecia, de calvície. A componente genética é fundamental, mas nunca pensei nisso. Até começar a acontecer. E foi muito rápido, em dois anos perdi o cabelo todo.” Tinha 29 anos. “Tive um sentimento de traição, de injustiça. Não cheguei a ficar deprimido, mas a imagem que esperava encontrar todos os dias no espelho não era a de um Carlos careca. Odiava não ter cabelo”, confessa, em entrevista, à “Notícias Magazine”.
Longe, a sul, outro homem de carreira erguida, economista e colaborador da Mota-Engil, sentia o mesmo, mas há mais tempo. Paulo Ramos, hoje com 54 anos, tentava debelar o desgosto desde os 18, investindo em vão o salário em todas as novidades capilares. Esta é a história de como dois homens, confrontados com a inexistência de uma solução para o seu problema comum, inventaram uma poção científica para a alopecia, transformando Portugal num dos países mais avançados do Mundo nesta área.
A fórmula, que não é mágica, e que está em desenvolvimento crescente há dez anos, vale hoje, em faturação anual, mais de vinte milhões de euros. O objetivo é a liderança mundial: percorrer a Europa nos próximos cinco anos, 25 milhões a investir na abertura de uma ou duas clínicas por ano, e depois saltar para o mercado americano e asiático. Cristiano Ronaldo é apenas uma peça desta pesada engrenagem. Não é sócio da Saúde Viável mas da Insparya, empresa criada propositadamente para exportar o conceito da clínica. “Não estávamos à procura de um sócio, muito menos de um milionário. Não precisamos de capital, precisamos de conhecimento. Mas a maneira como o Cristiano se interessou por nós foi uma mais-valia. Afinal, quem melhor do que o português que chegou a Espanha e se tornou rei do mercado como o melhor do Mundo para ser embaixador de um projeto como o nosso?”.
Da medicina desportiva aos transplantes
Há homens que deixam lastro, em cada porto um ponto. Carlos Portinha chegou a Portugal depois da descolonização, já a revolução tinha esfriado. O pai, nascido em África, resistia à mudança. O retângulo lusitano, nação a gatinhar na democracia, era território que nada lhe dizia. Conformado, acabaria por ceder apenas em 1976, trazia com ele mulher do Norte e dois filhos pequenos, um casal. Atracaram no Porto, berço da família materna, adotaram a cidade.
O rapaz ainda não entrara para a escola quando aprendeu a ler e a escrever. Por um momento fugaz atravessou-se-lhe na cabeça a ideia de que queria ser jornalista. “Passou-me rapidamente a loucura”, ri. Gosta de escrever, continua a escrever, textos guardados só ele sabe onde, textos que ninguém lê. Mas desde então não se lembra de querer ser outra coisa que não médico. “Queria salvar a vida das pessoas, queria parar o sofrimento das pessoas. Sou um lamechas”, diz, e agora já não ri.
No início dos anos 80 do século passado, o Cerco não era tão impopular como haveria de tornar-se. “Na escola, havia desde os filhos dos médicos aos filhos dos bandidos.” Portinha, que tem três filhos, Afonso, Beatriz e Leonor, num colégio privado, desembainha a espada em defesa da escola pública. “Foi maravilhoso estudar no Cerco, uma escola de vida fantástica, com colegas e professores que nunca hei de esquecer.” É uma paragem abrupta nos conceitos prévios o que conta sobre a turma de que fez parte até ao fim do Ensino Secundário. “Só da minha turma, naquele ano, 1992, entrámos quatro pessoas em Medicina. Outros entraram em Arquitetura e Engenharia.” Ele chega à Faculdade de Medicina da Universidade do Porto com uma média de 19 valores. “Tive a sorte de ter alguma inteligência, porque não me lembro de estudar até entrar no Ensino Superior.” Vira a página e muda a memória que há de construir a partir daí, nunca mais pára de estudar, obcecado em saber sempre mais. “Só podemos evoluir estudando e tendo a humildade de estar sempre atento ao que se faz no Mundo, mas também ao que faz o colega do lado”, enfatiza.
Começa por querer ser pediatra, depois acha que prefere Cardiologia e, quase no fim, a sua paixão por desporto – jogou ténis federado desde os sete anos até à faculdade – fá-lo ponderar a Ortopedia. No momento da escolha da especialidade (era o tempo em que a licenciatura tinha seis anos acrescidos de mais dois de internato geral), no minuto decisivo, já dentro da sala, acaba por escolher Medicina Geral Familiar, paixão que mantém intacta.
“Fui para um Centro de Saúde que funciona na Rua de Miguel Bombarda e que então era considerado um tubo de ensaio, porque era realmente diferente. Era gerido pela faculdade, não havia pacientes sem médico e todo o atendimento era especial. Creio que inspirou o que são hoje as Unidades de Saúde Familiar.” O detalhe do percurso parecerá despiciendo a olho nu, mas não é. É a escala cumprida em vários territórios da saúde que o faz, ainda hoje, escolher médicos de clínica geral quando precisa de contratar alguém de olho aguçado. “É gente com um olhar muito abrangente, logo desde a abordagem inicial.”
Caminhos de direção única são opções parcas para quem sente que pode trilhar várias estradas em simultâneo. Carlos Portinha, o médico que adora arquitetura, faz a especialidade ao mesmo tempo que dá aulas na faculdade, ao mesmo tempo que conclui uma pós-graduação em Desporto, ao mesmo tempo que faz peritagem médica na Autoridade da Saúde. Por um instante, quase parece que o itinerário se começa a afunilar, mas surge nova bifurcação, e ele volta a convocar uma espécie de semiubiquidade, trabalhando no Serviço Nacional de Saúde, no Centro de Saúde da Senhora da Hora, e no setor privado, no Centro de Medicina Desportiva do Porto, no Leixões Sport Club e com atletas a nível individual. Até que em 2003, no famigerado ano em o país ficou de tanga, tem o seu primeiro desgosto profissional. “Sei trabalhar com objetivos, mas não sei trabalhar com objetivos que não compreendo”, admite. “Naquela altura, havia uns prémios que eram pagos de acordo com índices que tinham em conta, por exemplo, passar menos exames complementares de diagnóstico aos pacientes. E isso não faz sentido. As pessoas ganharem mais porque gastam menos dinheiro ao Estado é incompatível comigo.” Foi a gota de água que ditaria o divórcio do serviço público.
Baterias apontadas à medicina desportiva, começa a trabalhar “com uma técnica que pouca gente usava então em Portugal: as ondas de choque (ou acústicas)”. A máquina, usada para sarar tendinites, dores musculares ou inflamações nos tendões, tinha também utilização cientificamente comprovada na medicina estética, nomeadamente na flacidez, na celulite ou na gordura localizada. “Como muitas das coisas que acontecem em medicina, esta descoberta aconteceu por acaso”, explica, “quando os médicos que tratavam atletas de ski de fundo na Suíça, com lesões na musculatura da coxa, perceberam que as atletas ficavam sem celulite.” Foi assim que a estética importou a técnica, cuja eficácia, frisa, está também a ser estudada para aplicação na neovascularização cardíaca nos pacientes com angina de peito.
Neste contexto, Portinha é desafiado a acumular mais uma especialidade, a medicina estética. E ele, que na vida nunca teve uma só área de interesse, pensou: “Porque não?”. Fundamentalista da formação, pesquisou lugar onde pudesse encontrar uma pós-graduação “iminentemente prática e de elevada qualidade.” A doze mil quilómetros de distância, foi o resultado da pesquisa. Em Singapura, no sul da Malásia. Fez as malas e as contas à vida, e seguiu.
Quando este “homem da Ciência” regressa, em 2009, estava o país quase a vestir novamente a tanga, decide que é chegado o momento de abrir o seu próprio espaço. Nasce assim a Clínica Aviz Porto, em sociedade com o amigo piloto Pedro Ruella Ramos. “O nosso objetivo era oferecer tratamentos de topo com evidência científica de resultados, medicina privada ao mais alto nível, tanto na medicina desportiva como na medicina estética”. Na cabeça de ambos, apenas um lema: “Propor só o que é verdade e fazer só o que de mais avançado existe”. Foram rapidamente descobertos pelas figuras públicas, tornando-se ponto de paragem obrigatório pelo passa-palavra.
No mesmo ano, e longe de imaginar que haveria de conhecer Carlos Portinha, Paulo Ramos, que há muito decidira que um dia investiria o seu dinheiro numa solução que pudesse ajudar as pessoas a recuperarem o cabelo, abre também uma clínica, a primeira filha da Saúde Viável. Em Lisboa. Estavam ambos lançadíssimos profissionalmente, ambos tinham inexoravelmente ficado carecas. Duas pessoas com o mesmo problema a fazer pesquisa em paralelo. Mas Ramos seguia mais à frente porque vinha mais de trás. A sua unidade clínica foi uma das primeiras a utilizar, em Portugal, a técnica FUE (Follicular Unit Extraction), inovação que permite fazer o transplante cabelo a cabelo e não, como outrora, através da técnica da tira, que dava aos pacientes um ar de passadeira de relva artificial na cabeça.
Perseguindo a sua obsessiva pesquisa, Carlos Portinha, já referência do Porto, descobre a Saúde Viável em 2010. “Depois de ter testado, sem sucesso, tudo o que havia no mercado, decido fazer o meu primeiro transplante.” Dez anos em medicina é uma eternidade, o tratamento era bastante diferente. A operação demorava dois dias, mil cabelos (unidades foliculares) transplantados em cada dia, doze horas consecutivas a ser submetido a extração e posteriormente a transplantação. Ao fim de tanto tempo, eis a primeira boa notícia: “De repente, acontece o fenómeno inverso, o meu cabelo volta a crescer e de forma muito rápida.”
Um ano depois, quando Paulo Ramos inicia a expansão do negócio para o Porto, contacta Carlos Portinha, inicialmente para cedência de espaço na Clínica Aviz e posteriormente para o convidar a ser diretor clínico do grupo. Dá-se um match profissional e tudo acelera. “O facto de os dois termos passado por tudo o que passámos dava-nos o conhecimento exato do que seria necessário para melhorar procedimentos.” Iniciam uma corrida científica desenfreada. Como Cristiano Ronaldo a querer marcar mais um golo depois de já ter ganho o jogo. E passam a investir um milhão de euros por ano só em investigação tecnológica e biomédica. Cinco clínicas, todas montadas em belíssimos palácios (a que existe na Avenida de Montevideu, no Porto, era a antiga sede do BPP, secreto museu de azulejos de Jorge Rey Colaço, o mesmo autor dos painéis da Estação de São Bento), uma academia de formação de ensino prático com recurso a realidade virtual, algo inovador nesta área, 80% da quota de mercado, inúmeras técnicas e ferramentas patenteadas, uma parceria com o i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde que junta o IBMC, o INEP e o IPATIMUP, e uma capacidade para realizar 38 transplantes por dia (20 em Portugal e 18 em Espanha), “desempenho que ninguém ainda atingiu”. Carlos Portinha, que já integrava a European Hair Research Society (EHRS), torna-se entretanto, também, membro efetivo da International Society Hair Restoration Surgery (ISHRS). Mas onde chegou afinal o grupo em 2020, do ponto de vista do benefício do paciente?
Novo centro de investigação no Porto
“A alopecia é uma doença.” Carlos Portinha não tem contemplações, pode dissertar sobre os mais variados temas – desde o teatro que fez na faculdade com o mestre Jorge Levi, passando pela paixão pela dança contemporânea, até ao exercício político que em tempos também desejou experimentar -, mas quando o foco é a calvície, o discurso endurece. Por uma razão: não tem paciência para o cliché de que “é dos carecas de que elas gostam mais”, nem para que não se aprenda de vez que estamos perante uma patologia.
“Não ter cabelo é como não ter dentes”, insiste. “É uma doença muito frequente, que afeta 30% dos homens por volta dos 30 anos e 50% por volta dos 50 anos. Nas mulheres de 50 anos, já estamos a falar de percentagens a rondar os 30% de possibilidade de sofrerem de alopecia.” As causas são múltiplas – desde as androgenéticas às ambientais (poluição, défice nutricional, stresse, ansiedade, depressão) e algumas ainda não se conhecem. Pior do que as causas, sublinha, são as consequências: “Um couro cabeludo desprotegido tem mais propensão para desenvolver carcinoma do couro cabeludo e cancro maligno da pele.” É uma das suas grandes guerras: “Provar que o transplante capilar é um ato terapêutico, que não só melhora questões relacionadas com a autoestima, depressão e ansiedade, mas também doenças físicas mais facilmente mensuráveis”.
Em 2020, o transplante capilar é realizado num único dia, com equipa dupla, porque Paulo e Carlos reconhecem que o segundo dia “era complicado para o paciente”. Em vez de duas mil unidades foliculares, hoje já é possível transplantar mais de quatro mil, com recurso à tecnologia exclusiva “Bothhair Dual Extraction Device”. Na Saúde Viável, garante o coordenador clínico, “quase toda a instrumentação utilizada” foi desenvolvida internamente e não adquirida a um fornecedor. É disso exemplo uma invenção recente que lembra, não pela forma mas pela evidência, a criação do mais elementar clipe de papel, atribuída ao norueguês Johan Vaaler. “Criámos um instrumento minúsculo, o InControl, que melhora a qualidade de implantação das unidades foliculares.” Para os pacientes com pouco cabelo a extrair, têm em investigação a multiplicação em laboratório das unidades foliculares – o órgão produtor de cabelo. E porque “o diâmetro da extração, a velocidade, a precisão e a profundidade” são cruciais, estão a criar um braço robótico “completamente inovador e disruptivo”. Como tratamentos complementares, criaram outras ferramentas, como um capacete de fotobiomodulação que ativa as células de crescimento. Carlos Portinha refuta que seja um tratamento para pessoas com capacidade financeira. “Temos várias soluções para quem tem menos capacidade ou nenhuma. Se não achasse que somos todos iguais, não seria o médico que sou.”
A nova clínica do Porto, quase a abrir nas costas da primeira, é mais um passo de gigante: tem capacidade para 13 salas de transplante e um centro de investigação. Que nasça no Porto, “cidade do caraças”, faz toda a diferença. “Vivo no centro, trabalho em frente ao mar, percorro o caminho todos os dias com um prazer enorme. Faço a linha do rio e vejo a ponte da Arrábida, emoções fortíssimas. É das obras mais bonitas do Mundo, é incrível como é sexy aquela ponte e o sítio onde está, a articulação com o rio, a cidade, a escarpa, a estrada cá em baixo, o casario no meio, quando se olha para o rio vê-se a cidade antiga, quando se olha para o mar vê-se um pôr do sol laranja lindíssimo, a ponte encaixada ali é uma coisa maravilhosa. Sou apaixonado pelo Porto. E não me achando pessoa de sorte, é uma fortuna trabalhar num sítio onde sou tão feliz.”
Quatro casos
Sobrancelhas, barba e cabelo
Cristiano Ronaldo interessou-se pela Saúde Viável quando, um após outro, iam chegando aos jogos da seleção nacional os jogadores com inesperadas cabeleiras fartas. Quando percebeu que o transplante é também extensível às sobrancelhas, a mãe, Dolores Aveiro, tornou-se paciente. É ainda possível transplantar barba. Hoje a clínica tem entre os clientes cerca de 200 figuras públicas, do desporto à televisão. “As figuras mediáticas não valem mais do que as outras”, ressalva Carlos Portinha, “mas são uma das melhores maneiras para as pessoas aferirem os resultados que somos capazes de conseguir”.
“Se não achasse que somos todos iguais, seguramente não seria o médico que sou”