Caretos: de Podence para a Humanidade

A UNESCO classificou o Carnaval de Podence, em dezembro, como Património Cultural Imaterial da Humanidade (Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Podence já prepara o Entrudo Chocalheiro, o primeiro desde que UNESCO distinguiu a tradição como Património Cultural Imaterial da Humanidade. Há quem vire mestre-de-obras improvisado e quem faça horas extra para garantir que nenhum emigrante fica sem fato. Deixar que a espontaneidade da festa dos caretos se perca é que nem pensar.

O careto é misterioso. É diabólico. É irreverente. O careto corre e salta como louco. E chocalha. Chocalha muito. As raparigas, pois. Solteiras, de preferência. O careto não pode ver um rabo de saias. O careto é vigor. Faz a festa. É o rei do Carnaval de Podence, aldeia de Macedo de Cavaleiros. Guarda-se o ano inteiro para agitar o Entrudo. O careto está mais vaidoso do que nunca.

Desde dezembro que é Património Cultural Imaterial da Humanidade. Foi a UNESCO que o disse. É o primeiro Carnaval depois disso. De 22 a 25 deste mês, esperam-se gentes aos magotes. Milhares. Vêm de França e de Itália. De Inglaterra. Dos Estados Unidos também. E dos países nórdicos. O careto rejubila. Sente a responsabilidade. O peso de honrar a tradição. Já se prepara para a “invasão”. E a aldeia de Podence com ele.

São 14 quilómetros quadrados cravados no centro do distrito de Bragança, agitados pelos preparativos para uma festa que, este ano, até com o presidente da República vai contar. Se não houver imprevistos, Marcelo Rebelo de Sousa vai a Podence na terça-feira de Carnaval. Será o mais ilustre dos milhares de visitantes que se preparam para esgotar a aldeia macedense.

A multidão obriga a cuidados redobrados. A preparativos meticulosos. A mais espaços onde comer e beber. No ano passado eram dez, mais coisa menos coisa. Neste ano, garante o presidente da Junta de Freguesia de Podence, João Alves, serão pelo menos 26. Uma boa parte deles nos “baixos” das casas (pisos térreos onde, noutros tempos, se tinham os animais).

Bombeiros Voluntários de Macedo de Cavaleiros têm trabalhado para transformar uma casa velha em espaço de festa (Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Mas também há quem ceda a casa – um palheiro incluído – para fazer dela epicentro do festim. Chama-se Amílcar o benfeitor. Conta-nos João Venceslau, comandante do Corpo de Bombeiros Voluntários de Macedo de Cavaleiros e responsável por uma remodelação-relâmpago de um espaço a caminhar para o devoluto.

É um de um punhado de homens que andam num corrupio, porta dentro, porta fora, a carregar madeiras, a fazer medições e outras coisas que tais para que a velhinha casa do senhor Amílcar, desabitada há muito tempo, possa estar nas melhores condições para receber os convidados. “Começámos os trabalhos na semana passada e vamos estar aqui mais ou menos três semanas”, explica João Venceslau.

Primeiro foi preciso tirar o estrume (do palheiro) e desinfetar. Agora, há que reforçar as madeiras e construir os bares improvisados. “A primeira fase foi de limpeza e avaliação. Tivemos de perceber se a obra era financeiramente viável.” Perceberam que sim. Mesmo que, a princípio, o cenário fosse tudo menos animador. “Nem imagina o estado lastimável em que isto estava.”

Parte da motivação estava ali, assente na fachada: um vistoso e imponente grafíti dos caretos a colorir a aldeia. “Esta imagem foi o que nos foi dando alento.” Isso e o facto de saberem que todas as verbas angariadas durante a festa revertem para a Associação Desportiva e Cultural dos Bombeiros Voluntários de Macedo de Cavaleiros.

Há outras mudanças preparadas, a pensar nos quatro dias de festa. A tenda onde decorrem os concertos, por exemplo (que inclui também um espaço de restauração), terá o triplo do tamanho. Haverá mais barraquinhas. Mais grupos de animação a integrar a programação do Entrudo Chocalheiro. “Queremos que o evento seja cada vez maior e melhor”, assegura João Alves, presidente da Junta. Haverá também mais caretos. “Estamos à espera de uns 50 ou 60, talvez mais. Uma grande parte deles emigrantes.”

Em Podence, o mês dos emigrantes é mais do que agosto. É fevereiro. Por vezes, março. Quando quer que calhe o Carnaval. Muitos preferem vir à terra pelo Entrudo. E fazem questão de se vestir a rigor. Que o digam Filipe Costa, 33 anos, e Sofia Pombares, 22, um casal há uns quantos. Andam desde o verão a trabalhar arduamente, para atender aos muitos pedidos que lhes vão chegando. De emigrantes sobretudo. Uns pedem fatos. Mesmo que cada um custe 800 euros. Outros, emigrantes ou nem tanto, as lojas das redondezas também, querem sobretudo máscaras.

E eles lá vão atendendo aos pedidos como podem. Talham as máscaras em placas de zinco ou em couro e pintam-nas com “um ar meio diabólico, meio cristão”, explica Filipe. Talham as mantas, socorrem-se de um tear para fazer as franjas – para um só fato são precisas várias dezenas de metros – e cosem-nas à mão. Só um fato demora horas a fio a estar pronto. Na aldeia são os únicos que o fazem do princípio ao fim, garantem. Até os chocalhos vendem (mas não os fazem, mandam vir do Alentejo).

Filipe Costa e Sofia Pombares andam desde o verão a fazer fatos e máscaras (Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Filipe dá aulas de Turismo. E Sofia estuda Enfermagem. Vão gerindo a labuta como podem. “No resto do ano, trabalhamos duas ou três horas por dia.” Daí que só um fato demore um mês a fazer. “Agora é de manhã à noite.” Com a distinção da UNESCO, “têm vindo mais turistas”, assegura Sofia. “Acho que este vai ser o nosso melhor Carnaval.”

Filipe herdou o ofício do avô, que era sapateiro e já fazia máscaras em couro. Com a chegada das máscaras em lata, estiveram quase a desaparecer. Filipe não deixou. Com a mãe, aprendeu a fazer as franjas dos fatos. Depois, foi ele mesmo que ensinou à namorada como se fazia. E assim se tornaram uma espécie de artesãos oficiais do Entrudo de Podence.

A prova está no “baixo” que transformaram em oficina improvisada. Quem entra, vê paletes a servir de expositor. Numas, há garrafas de licor e bagaço. Noutras, ímanes que são máscaras de careto em ponto pequeno. Também há navalhas. E gorros feitos à mão. Merchandising para todos os gostos. Uma das paredes está coberta de máscaras. Ao lado, um fato de careto, com máscara e tudo.

No chão, fios, pedaços de tecidos e pontas soltas de outros materiais. Restos de um trabalho que tem sido intenso. Tanto mais quanto se aproxima o grande dia. E mesmo assim não conseguem atender a todas as solicitações. “Ainda agora, numa loja de Macedo, me pediram mais máscaras. Mas não vamos ter tempo de fazer mais. Temos de começar a limpar isto.” É que a partir de sábado, 22, este será um dos “baixos” transformado em espaço de restauração improvisado.

A mulher, sempre a mulher

Mas, afinal, quando nasceram os caretos, esses seres “diabólicos e misteriosos” que, anualmente, fazem questão de sair à rua esbaforidos, durante as festividades carnavalescas? “É uma tradição de origem celta, que se perde no tempo”, responde António Carneiro, presidente da Associação dos Caretos de Podence. “Começaram por ser rituais de passagem, formas de extravasar, sempre com a mulher como grande atrativo. Parte do segredo é a interação.” E foram-se fazendo tradição.

Mesmo que nos anos 1960, por causa da guerra colonial e da emigração, quase tenham estado para acabar. Voltariam em força nos anos 1980, com o regresso de alguns emigrados. E com a criação de uma associação. Primeiro, a Associação de Melhoramento de Festas e Feiras. Depois, em 2002, a Associação dos Caretos de Podence que, entre outras coisas, é responsável pela organização do Entrudo Chocalheiro.

E que sente o peso da responsabilidade trazida pela distinção da UNESCO. A principal é de manter a matriz da festa. “Temos de ter alguma preocupação, para não alterar os conteúdos e o espírito dos caretos. Queremos que a festa continue genuína, tradicional.”
No restaurante O Careto, paredes-meias com a associação, três gerações explicam a tal matriz.

“Se somos caretos? Claro que sim. Nós nascemos nisto. Está-nos no sangue. Quando era miúdo, já andava com um casaco [de careto] grande, que me tapava todo”, recorda Miguel Malta, 43 anos. Diamantino Félix, 73, que se vestiu de careto durante mais de quatro décadas (“só há três ou quatro anos é que deixei, porque já estou velho”), lembra que já o avô se vestia a rigor para o Entrudo. E depois há Egas Soares, um “paraquedista” da Régua que foi casar a Podence há quase 30 anos e depressa se converteu num careto por excelência.

Egas Soares é da Régua, mas desde que chegou a Podence que veste a pele de careto (Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

“Na altura houve uns amigos, que já eram caretos, que me desencaminharam.” A experiência fez-se amor para a vida. Mesmo nas horas mais amargas. “Há uns anos estava no hospital, a caminho do bloco operatório, para ser submetido a uma cirurgia, quando, na televisão, começaram a dar os caretos. Disse-lhes que podia ser a última vez que via aquilo, portanto que me deixassem parar ali para ver aquilo.”

Não só não foi a última vez como continuou a vestir-se de careto. “Isto para mim é uma prova de força. Enquanto tiver força, hei de continuar. Você não imagina. É uma adrenalina maluca. Uma pessoa veste o fato e fica cheia de força. Parece o Popeye quando come os espinafres. Até nos esquecemos de tudo.”

Egas será, por isso, um dos muitos caretos que, entre 22 e 25 deste mês, correrão Podence a tentar chocalhar todas as moças que encontrem no meio de uma multidão que se espera farta. E de uma festa que se prepara para ser a maior de sempre. O orçamento é que continua aquém dos pergaminhos.

“A Câmara de Macedo contribui com dez mil euros diretos, mais cinco mil noutras ajudas. É um orçamento curto. Quase metade do que precisávamos”, lamenta João Alves, presidente da junta. E a distinção da UNESCO não se traduz em qualquer apoio financeiro. O prognóstico não podia ser mais positivo, ainda assim. Esperam-se pessoas aos milhares. E hotéis esgotados em toda a área do nordeste trasmontano. E caretos, claro. Às dezenas. Misteriosos. Diabólicos. Irreverentes. A correrem e a saltarem como loucos.