Aquele nervo
Um dia teremos saudades disto? Um autocarro cheio sai dos subúrbios para o centro de Lisboa. Toda a gente atrasada para o trabalho, as pessoas levantam-se cedo para trabalhar longe. Ficar em casa ainda não se usa. Sem distâncias social, sem paciência no trânsito parado, estradas alinhadas de automóveis como escaravelhos verde-esmalte, vermelho, prateado. Entre os carros, numa grande lagarta amarela a abarrotar de passageiros, vai um motorista tão lento que seria bom para o ir mandar buscar a Morte.
São 9.20 horas no autocarro da Carris n.º 1765 de Fetais à Praça do Chile. Entre duas paragens, uma passageira pede para sair. O emprego dela é ali mesmo e está 45 minutos atrasada. Em segundos, levará um murro no nariz e baterá com as costas num ferro. Diz a acusação: “Fortes dores nas zonas do corpo atingidas e fractura dos ossos próprios do nariz, resultando desvio nasal direito e dificuldade respiratória nasal”. Pneumotórax com sequelas permanentes mas não graves, cicatrizes. Drenos nos pulmões. Quatro meses de baixa, 14 dias em internamento hospitalar.
No banco dos réus, em sobretudo creme, o senhor Humberto, luso-guineense. É um seguidor da teoria portuguesa de “os nervos”. E usa frases com dois pontos. Do género: isto foi assim:
– Isto foi assim: nós vínhamos todos na camioneta, os passageiros todos, com o motorista. Acontece o seguinte: o motorista andava com a camioneta devagar. Toda a gente estava um pouco chateada por o motorista andar devagar, mas isto foi o seguinte: toda a gente vinha chateada, e a senhora também. Toda a gente estava. E eu também. E a senhora queria que a camioneta parasse antes, mas eu disse à senhora: “Ó dona, desculpe lá, aqui não é a paragem da camioneta…” “Ah, estás a falar comigo assim?! Vai falar para o caralho!” “Ó minha senhora, a senhora não pode falar assim”… desculpe a expressão, doutora… “a senhora não pode falar assim”. Nós todos estávamos um bocado aborrecidos, a senhora estava, eu também estava, e digo sinceramente por minha convicção que não fiz isso para atingir a senhora, pronto… eu nunca fiz isso, nunca tive crimes assim, também nunca bati em ninguém e pronto, aconteceu aquele nervo…
– Confirma que deu um murro a esta senhora, na camioneta?
– Pronto, é assim: naquela altura eu nem estava a ver.
– Senhor Humberto, se quer falar, tem de me esclarecer. É muito simples: o senhor deu um murro no nariz desta senhora, na sequência deste diálogo? Ela estava imóvel?
– Quando isto aconteceu, ela não ficou imóvel. Ela estava sentada na cadeira e eu fui ao pé dela e pedi desculpa: “Ó minha senhora a senhora desculpe, foi uma coisa que eu fiz sem querer…” “Ah, não, isso não vai ficar por aí! Vais ter de pagar isto!” E eu: “Ó minha senhora, isto aconteceu, foi uma coisa assim nervosa, de espantar a mente”. “Ah, não, não!” A camioneta parou e vieram dois polícias e tiraram-me os dados todos e o caso foi assinalado. Até que chegou aqui e estou a responder por isso.
– Então a senhora não foi bater na parte metálica do autocarro?
– Não, a senhora ficou sentada ainda, a conversar comigo com o nariz coiso e até fui perto dela pedir desculpa, como é que ela diz que bateu na parte metálica?! Eu só disse, quando ela disse que queria descer: “Minha senhora, aqui não é o sítio onde pode descer”.
– Quando deu um murro no nariz desta senhora, o senhor sabia que estava a praticar um crime, não sabia?
– Sotora, sei sim que assim é.
– E sabe hoje e sabia na altura.
– Sotora, aquele nervo!
– Na altura, apesar do nervosismo e dela lhe ter respondido mal, sabia que ao dar um murro estava a praticar um crime.
– Sotora, eu sei que o homem não deve bater na mulher.
– Não é isso! Ninguém pode bater em ninguém, isto não tem nada a ver com homens e mulheres, a lei não diz que os homens não podem bater nas mulheres, diz que não podemos agredir as pessoas fisicamente, seja homem, seja mulher. A senhora tinha o direito de lhe dar um murro a si?
– Não.
Sabe sim que assim é. Mas os nervos é que. É de espantar a mente.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)