Rui Cardoso Martins

A terrível acusação

(Ilustração: João Vasco Correia)

A 22 de Dezembro de 2017, mês que registou temperaturas mínimas muito inferiores ao normal, uma mulher viajou da fronteira com Espanha até Lisboa. Era Natal e ia numa missão terrível. Para alguns, o antigo desejo de destruir a família com uma mentira. Mas se esta mulher, a meio da canícula do Verão, cruzar hoje de novo a planície, do sudeste ao litoral, dirá: é tudo verdade.

Assim fez em Julho de 2020, no tribunal. Levantou-se para a sentença e a juíza começou: “No dia 22/12 de 2017, a arguida deslocou-se a Lisboa à Comissão Nacional dos Direitos e Protecção de Crianças e Jovens, onde perante os técnicos (…) disse que tinha sido abusada sexualmente quando tinha nove anos pelo ex-marido da participante, que este fez o mesmo à sua irmã mais nova, e que a assistente sua tia sempre encobriu estes abusos, tendo chegado a ameaçá-la e a agredi-la fisicamente. Tendo ainda referido que não sabe se o ex-marido da tia abusou dos próprios filhos, que foram adoptados, e acusando-a ainda de ser parcial no tratamento de situações de maus-tratos a crianças, nada fazendo relativamente a situações com familiares, mas tendo levado a tribunal outras situações”.

É possível imaginar o impacto desta denúncia: a tia que a mulher acusava era educadora de infância, professora e presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens da pequena cidade de província onde as duas vivem. A tia soube tudo quando começou a inspecção, ordenada pelos serviços centrais e pelo Ministério Público. A juíza lia: “Quis e conseguiu causar sofrimento à assistente, denegrir a sua imagem, bom-nome, reputação, isenção e imparcialidade, e a forma como nas suas funções sempre teve em conta o supremo interesse da protecção das crianças. Bem sabendo que as imputações não correspondiam à verdade e que não tinham qualquer fundamento”.

No banco dos réus, a sobrinha respirava devagar mas, às vezes, uma impaciência sacudia-lhe os ombros. Ando há 40 anos nisto, diziam os ombros.

“A assistente sempre foi boa mãe e cidadã exemplar. Nunca encobriu qualquer crime que a arguida imputa ao seu ex-marido, e que este nunca cometeu, nunca promoveu ou foi causa de qualquer incompatibilidade da arguida com os seus familiares.

“Sabia que não correspondiam à verdade tais imputações e sabia que ao fazê-lo ofendia gravemente a consideração profissional e pessoal da assistente. (…) Falou de forma alterada, mostrando ter diversas mágoas relativas à tia e aos irmãos da mãe, por entender que esta dava prioridade na gestão do património, em detrimento da própria família nuclear.”

Numa parte, a juíza lembrava os argumentos da ré. Que ninguém na família a ajudou. Que nunca apresentou queixa quando teve idade para tal, porque era um meio pequeno e era difícil, pelo que nunca apresentou queixa na polícia para além da altura dos factos, que foi ignorada. Mais tarde sentiu que a sociedade estava mais sensível para a temática dos abusos sexuais.

Mas toda a gente a desmentiu sempre, sempre, sempre. A irmã negou no tribunal: “Nunca foi abusada, nunca esteve presente, nunca viu abuso nenhum, nunca teve problemas com o tio e não fala com a irmã há 20 anos”. A juíza condenou-a a multa.

“Senhora Dona M., compreendeu a sentença? A senhora vai condenada numa pena de multa pela prática do crime de difamação com calúnia, a senhora não demonstrou qualquer arrependimento.

“Deverá esquecer o passado, procurar não criar conflitos, seguir com a sua vida e investir nas suas próprias competências este ano. Porque a senhora em audiência de julgamento demonstrou ter competências. Portanto deve investi-las em si, no seu próprio desenvolvimento, e não tanto em conflitos, noutros problemas que possa ter tido com familiares, porque isso não vai trazer nada de bom à sua vida. A senhora tem uma filha, podem ajudar-se uma à outra e encararem o futuro de uma forma mais positiva. E o tribunal espera que a senhora não tenha de vir de novo a tribunal por situações desta natureza. Compreendeu. Senhora Dona M.?”

– Compreendi, mas estou absolutamente contra…

– Muito bem…

– …porque as pessoas não devem ser condenadas por dizer a verdade.

Quando saiu, exclamou qualquer coisa sobre “a bruxa”. Vi-a na rua, pesada, zangada, tentei imaginá-la com nove anos, quando a história começou, ou não começou, mas não consegui.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)