Um dia de greve
O segurança lá em baixo, com o seu cabelo de prata, disse-me que era provável que viesse em vão, porque não estava a ver que fosse haver julgamentos, sr. Rui, porque apesar de não o terem avisado a ele de nada, sendo ele quem tratava da segurança da entrada, arranjara cópias das convocatórias de greve e iam juntar-se no mesmo dia a greve dos magistrados do Ministério Público com a da Função Pública, pelo que, concordei eu, juntando uma minoria com uma maioria, ambas empenhadas em reivindicações de carreira, e com as duas a anunciarem adesões de 90 por cento ou mais, era quase certo que ia estar tudo fechado.
Mas o guarda sugeriu que fosse lá acima confirmar, nunca se sabe, ou então perguntar na secretaria do 6.º piso. Abri a mochila, mostrei-lhe os papéis e óculos na desarrumação da mochila, esvaziei os bolsos de chaves, telemóvel, tilintei moedas e passei pelo pórtico magnético (o detector de metais não apitou, desta vez não vinha armado…) e embarquei de elevador para o vazio lá em cima.
Nada nem ninguém no 3.º piso do Campus de Justiça.
Nada nem ninguém no 4.º piso.
Estranha impressão: às vezes estes átrios parecem os corredores de um cinema popular, quase temos de fazer gincana pois o piso está coberto de pessoas: das que gostam de comédias, pipocas e coca-colas, e de outras mais dadas a filmes de terror, tragédias e álcool. Nessas manhãs, parece a matiné dum cinema Multiplex…
Mas hoje nada nem ninguém no 5.º piso.
Mentira. Está uma senhora jovem num dos bancos ao fundo. Olha a luminosa vista do Tejo, os carrinhos cor-de-burro a cavalgarem a ponte Vasco da Gama, fugindo para Sul.
– Dá-me licença?
– Se faz favor, disse a jovem, e o desconhecido sentou-se.
– Peço desculpa, a senhora é testemunha de um caso?
– Sou.
– Sabe que é pouco provável haver julgamentos, com a greve?
– Pois, sorriu ela, mas disseram-me para esperar até às onze e um quarto, e depois perguntar no 6.º piso.
O sr. Rui apresentou-se, explicando que escrevia coisas cómicas mas também terríveis de pessoas que vão a tribunal num momento capital da vida, uns são réus, outros testemunhas, e que decerto era um inconveniente para ela estar a perder a manhã (sem cerimónia, o sr. Rui espicaçava o sentimento dos cidadãos entalados pelas greves sucessivas…). Ela disse que assim era, mas pronto. Chefe de uma estação do metropolitano de Lisboa. Um dia um homem entrou armado de uma barra de ferro e começou a partir portas de acesso ao cais. Partia a zona dos leitores de passes sociais, ameaçava bater nos passageiros. A polícia agarrou-o lá fora.
– Eu é que chamei as autoridades. Estava de serviço e comecei a ouvir o barulho da destruição.
– Como era o ferro?
– Ao longe, pareceu-me um ferro grande.
– Aproximou-se?
– Não, podia agredir-me, conforme ameaçara várias pessoas que vieram ter comigo, assustadas. Apesar de ser responsável da estação, a minha integridade física está à frente disso.
E sorriu, e fez bem, porque era verdade.
– Já me tentaram bater, mas muito grave foi só esta.
– Mas é comum tentarem bater?
– Quando o cliente não tem razão, tem de arranjar motivo.
Passos no corredor. De repente, éramos três no 5.º piso. Entrou um homem largo com um “cap” de básquete de New York (os óculos de sol pendurados na pála, como se estivessem à varanda). Um rabo-de-cavalo despenteado. O sr. Rui olhou a chefe de estação e os olhos dela diziam: “É ele, é o homem da barra de ferro!…”
– O senhor é testemunha?, fingi.
– Não, disse o homem sem barra de ferro.
Chegaram quatro armários-polícias que disseram: isto passou para a data seguinte. E a chefe de estação do metro saiu com eles.
O homem sem barra de ferro tinha baixado os olhos aos polícias, mas agora olhava-me, seco. Queixou-se de que ia perder um dia de trabalho, por culpa da greve. O sr. Rui informou-o de que contava casos de tribunal num jornal.
Silêncio, que se vai afiar ferro. Depois, uma genuína cara de pena:
– Pois, e também hoje veio aqui e não vai escrever nada…
O sr. Rui calou-se. Quase nada, meu caro. Quase.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)